Será que por trás da coragem de quem porta um copo, há medo? Como quem porta uma arma?
Banheiro podre, pia, Rio, suor. Boteco, pedido, gelada. Conversa honesta, desilusões, arte. Brinde em nome de um fato, pequeno e simplório. Satisfação. Pede o valor, divide, ponto de ônibus, meia hora, lamenta a condição dentro de um táxi, atraso. Debate-se a traição da esposa honesta do motorista, debate-se com o verniz da indignação, confesso de ter feito besteira. É quanto, mestre? Paga-se. Esquina, papo furado, engradado, escadaria. Sol, laje e fio dental nas tias. No final, acima dos prédios, um arrebol espetacular e benevolente.
O dia havia sido retratado afetivo e lentamente. Agora, no quintal de casa, encostávamos no bar do Vilmar, subida do morro. A pretensão era correr bares. Na recompensa, a noite insone. A peregrinação como vasta tela da diversidade, funcionava como efeito prodigioso na compreensão do gueto e da vida. E nos oferecíamos a esses efeitos.
Contudo, à medida que o povo ao pé do morrinho ganhava proporção, nos víamos encurralados a pedreira, ao muro. Laborioso como o acaso se manifesta. Dali o formato era panorâmico. Calmo, ainda que receoso, intui presenciar a maior ópera da terra. Privilegiados, mantínhamos os copos cheios.
O copo cheio, pelos bares, na mão do homem desprezado e humilde era o último bastião entre a consolo da dor e a felicidade fugaz, entre o caos e a barbárie. O copo funcionava nas periferias como mediador da cólera contida, como o asilo dos desejos refreados. Por detrás do copo, muitos convenciam-se até da miragem de beleza e juventude, que o líquido ilude. E, se caso houvesse a falta desse, do remédio sem prescrição, eclodiria a rebelião.
O copo, como o charuto a alguns, o cigarro a outros, se combinados podiam trazer mais elegância, principalmente se entre os dedos este se conservasse firme. Ao passo que na mesma mão o copo fosse trazido ao gole, mas isso já era uma técnica dos antigos, que nunca mais tive oportunidade de ver. E, se trazia contemplação, o copo também trazia culpa e frustração.
Isto posto, ali entre nós, misturados havia desde o miliciano, ao traficante e o ex- traficante, o usuário, o policial, o ex-detento, ao sete um; o agente penitenciário, aos trabalhadores liberais, as mães, avós, artistas, todos atrás de um copo de cerveja. Em toda sua indiscriminada tensão e sedução. O rastro de pólvora havia sido temperado ao chão. Ainda que fossem todos conhecidos, uma faísca apenas, um olhar atravessado, aquilo ali viraria um faroeste. Entanto, todos éramos índios. Seríamos dizimados.
Pro alto, o morro iluminava a noite mais cintilante que o próprio céu de estrelas. E, nas sombras ao canto do bar, as caras soturnas, transmutadas e tremendo. Nos corpos curvos dos trabalhadores que chegavam, sorridentes uns paravam e chamavam pra dentro, já outros sacavam o incêndio, os de espírito vagabundo.
No labirinto dos acontecimentos, Pato me alertou, preocupado:
– Lulinha e Allan não são da área. Aquele meio ali… é onde tudo sempre rola. Não dá pra ficar andando ali não!
E de fato, a teoria que seguia a cidade, a teoria dos corpos caídos, havia a pouco em Madureira se conflagrado. E o vento açoitou e zuniu uns telhados de amianto até os de zinco, o chão estremeceu, virou em brasas a churrasqueira e então lá foi uma arma levada à mesa. A natureza que havia livremente oscilado tudo ao redor, agora assistia, inocentemente. Levantaram-se. E o tempo parou.
Foi quando surgiu Maria Preta, oitenta e poucos em passos moderados, cabeça baixa. Que muitos davam por louca. Assim que levantou, levou mão ao queixo, examinou. Com olhos injetados, se demorou mirando todos, estranhamente, afinal, conhecia do esquema. Pediu um copo, o deram, o encheram, bebeu. E, na sua presença as armas e o medo se recolheram. Ajoelhou-se e subiu degrau à degrau qual muitos se submetem a igreja da Penha, agradecendo.
E, no dia em que a Serrinha, em Madureira queimou, aqui no morrinho em Ramos, aqui no Rio, onde os corpos a cada algum minuto, sempre caem, os copos, apesar do medo, substituíram as armas.
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