Todo império cai! O realismo com que essas palavras permaneceram e com que força, apesar de tão fatigada a mente, é o mais estranho. Todo império cai! Disseram ou eu disse? Antes mesmo desse evento se impor diante de nossas frágeis e turvas retinas, sobre ainda mais garrafas que se aglomeravam no chão, discutíamos a busca do inconsciente e seus poderes na obra de Afa.
Estávamos na mesma esquina em que o maestro Pixinguinha dizia a sua senhora que iria à padaria, à farmácia, ao jogo do bicho e ali parava, iludindo-a apaixonadamente. Afa se levantou e foi ao banheiro, sugerindo que o aguardássemos, como quem pudesse deixar fugir a ideia, nas distrações que um lugar como aquele provocava. Era o velho bar da Portuguesa, base de nossas operações, onde foram algumas estratégias de vanguarda executadas. E o aguardamos, Pato e eu, debaixo do toldo verde e vermelho, dividindo no silêncio a grandeza do que dizia.
Assim como o maestro, Afa retornou apenas um tempo depois, com uns bolinhos da casa, sem o fio da conversa perdido. Ele era artista plástico e nos indagava gentilmente sobre as suas necessidades de captar o universo do subconsciente da mente humana a sua pintura, quando lá fomos, alcançados em nosso voo mais alto e extraordinário. Rasta havia chegado, seguido por Russo, juntando-se sob a mesma tenda. Quietos e cordiais de início, inflamados logo empós.
Um vinha com a audácia e elegância dos riscadores de salão, o outro trazia na bagagem o fardo dos malandros antigos, talvez os últimos suburbanos românticos daquele dia. Isto posto, todos fomos arrebatados a decidir entre um pé sujo digno de memórias ou um sobrado no estilo dos mais sutis cabarés. Afa tomou a dianteira:
– Então, há um! Tudo isso num só lugar. Lá no Alemão.
Ao ouvirmos aquilo ficamos impulsivos e felizes. Rasta, que havia chegado de fora do país, ainda mais. Esse camarada retornava pra ver a família uma vez por ano. E seu olhar sedento expressava aquela emoção.
Então, partimos ferozes.
– Austin? Depois de Nova Iguaçu, conheço. Já fiz muita entrega por lá!
Disse Russo engrenando a moto, num sorriso seguro e sábio.
– Áustria, coroa! De Viena!
Rasta gritou, enquanto Russo arrancava, dizendo:
– Tô ligado cumpadi! A gente bebe uma lá também.
Não demorou muito e alguém avisou que faltava apenas uma última ladeira. O lugar estava vazio. Havia um banheiro do lado de fora, antes mesmo da entrada, uma corda como fecho aberta e um papel colado escrito toalete. Dentro, um balcão ao fundo com balas, doces e salgadinhos, todos pendurados num barbante. Uns troféus, uns orixás, uma santa desenhada na parede. A esquerda um misterioso cômodo que não tínhamos acesso, de onde o dono saía com as canelas russas como que por magia, e uma mesa de bilhar ao centro, um clássico nesses tipos de refúgio. Aquilo ali parecia esperar por nós.
Enquanto a noite chegava, podíamos ver através da janela panorâmica todo o Complexo, de forma arrebatadora. A quem se inclinasse um pouco mais, à beira do penhasco, veria no abismo profundo uma espécie de vale, onde carros, motos e pessoas em miniaturas tinham vida própria, pulsando aquela imensa metrópole. A frente, durante o pôr-do-sol nevoado, ainda sim cor de sangue, havia no contorno sinuoso outro morro, como uma onda de um tsunami paralisada no ar, em que, as luzes iam acendendo e produzindo um efeito majestoso.
Quando me dei conta e virei para dentro do bar, vi ao redor da mesa de sinuca uma verdadeira praça de guerra. Entre nós, todos derrotados. Russo era o homem a ser abatido. O jeito sacaneador, pilheiro, era sua tática a cada batalha e era intimidador. Só sei uma coisa, disse a mim mesmo ao distribuir copo a copo aquela gelada cerveja e ao ver que de boca em boca de moradores em torno dali já se iam apresentando numa fila que descia pela escadaria do lado de fora, para vencê-lo, desse modo, a coisa ia ficar feia.
Um por um depois de derrotado, deixava umas pagas na conta do Russo ao sair, mas, ficavam por lá, reagrupando. Isso só deixava o baixinho nordestino dono do bar ainda mais entusiasmado. Em cada rosto deprimido, o símbolo do Império Russo. Gordinho e cara de danado, com os olhos levemente esverdeados, aos 50 anos, já era uma espécie de Alexandre, O Grande daquela mesa, se nascesse pelo alto subúrbio.
Se nada fosse feito, em consequência da humilhante submissão imposta, haveria uma rebelião. Havia um espírito favorável, havia um vermelho sangue do céu, em seus olhos, e havia raiva também. Pato estava impressionado, mas como não era de bobeira, chamou-me num canto e deu o ultimato:
– “John”, faremos exatamente o que o Afa vem trabalhando! O inconsciente deve ser trabalhado aqui. Para que a gente saia ileso.
Foi nesse momento que tentei recordar o que dizia, e lá me veio como de súbito, a questão se desenrolando. As cervejas pagas dos vencidos retornariam em massa às mesas, insuflando o pensamento único em direção ao copo de Russo, baleando-o pouco a pouco. Com isso, nós devolveríamos as pilhas em que ele se fazia, trazendo dos risos o estímulo e a desatenção necessária para que, Afa, morador, pudesse retirá-lo da mesa, em que se perpetuava.
Recordo apenas que na descida havíamos saído vitoriosos daquela derrota. Todo império cai! E, ao som de músicas tristes, como numa ópera de cornos, que se reiniciava a cada fim de lista e que diante de nós o inconsciente coletivo havia demolido um império. Russo reclamava consternado e bêbado, enquanto nós riamos pra valer. Todo império cai! Talvez eu mesmo tenha dito essa pérola que se repete, e se repete, ao ver, num remoto bar, os gritos e urros de alegria, da união daquela gente ao derrubar uma dinastia.
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