Numa observação à distância do cenário político nacional, um turista estrangeiro rodrigueano anotaria no seu caderninho: “O Brasil está descontrolado ladeira abaixo”. A prova mais recente é o episódio Ludhmila Hajjar, uma comédia de erros incrível em qualquer país que se pretenda sério.
Por falar nisso, um parênteses: Jamil Chade informou sexta-feira no UOL que o Brasil já é chamado no meio diplomático internacional “país da morte” pela ameaça sanitária ao mundo. Enquanto todos lutam contra a pandemia nós a abraçamos e incentivamos numa política de governo deliberada e genocida.
A cardiologista de 40 anos de idade, incentivada por medalhões do Congresso e do Judiciário, foi convencida a uma entrevista de emprego com o presidente da república num domingo, dia de descanso, mas era urgente e não há esforços a poupar. Ela rabiscou um plano de ação para o Ministério da Saúde repleto de providências e posturas condenadas pelo governo no combate à pandemia e embarcou no voo para Brasília.
Deparou-se na entrevista com o general Pazuelo e o deputado Eduardo Bolsonaro, duas anomalias, pois entrevistas de emprego se dão entre o candidato e o patrão ou alguém do RH. Mas Ludhmila já estava lá e não dava para fingir uma dor de barriga súbita. Millôr dizia que existem situações em que a gente precisa de toda a presença de espírito, quando o ideal seria a ausência de corpo.
O general fez perguntas, o deputado fez perguntas, o presidente fez perguntas e ela procurou responder com franqueza e sinceridade – ou quase isso. Falou-se de um áudio em que ela se refere a Bolsonaro como psicopata, ela negou de pés e mãos juntos. Então veio à baila o vídeo em que ela está com a ainda presidente Dilma Rousseff e canta, acompanhando-se ao violão, “Amor I love you”, sucesso de Marisa Monte conhecidíssimo no país e no exterior. Como se sabe, brincar no play com petista é pecado capital no seio do bolsonarismo raiz.
Não creio que tenha acontecido assim de cambulhada como escrevi acima, mas é tudo verdadeiro, inclusive a derradeira tentativa de Ludhmila em mensagem a Bolsonaro na noite daquele domingo comprometendo-se a ser cem por cento fiel às ideias dele, e se assim não fosse ele poderia demiti-la. É maluquice supor que um ministro aja contra a política do governo, mesmo para quem conhece por dentro este governo.
Além disso, bolsonaristas bombardearam-na nas redes sociais com vídeos, as costumeiras calúnias, injúrias e difamações e ainda tentaram algumas vezes entrar em seu quarto no hotel dizendo-se colegas de equipe e outras mentiras percebidas de cara pelos seguranças locais, pois bolsonarista que se preza não se encaixa em disfarce de médico nem com jaleco e estetoscópio no pescoço.
Do episódio, a cardiologista saiu chamuscada como o professor Decotelli, que quase assumiu o MEC, mas é preto e inventou currículo para ocupar cargo público, o que só branco pode fazer. Dois casos distintos que mostram o grau de amadorismo do governo e de ingenuidade, oportunismo e vaidade dos candidatos indicados.
Como é que o Decotelli não sabia que iam checar seu currículo nos mínimos detalhes em busca de pretexto para o racismo? E como é que a linda, leve e loura Ludhmila se abalou para Brasília acreditando salvar o país da pandemia com Bolsonaro na presidência? Antes dela, Mandetta e Teich tentaram e falharam e são médicos também e ainda por cima homens. É proverbial o grau de desprezo de Bolsonaro pelas mulheres desde o episódio da “fraquejada”.
Destes exemplos tristes e lamentáveis tira-se a conclusão de que o serviço de inteligência do general Augusto Heleno não cumpre suas tarefas mais elementares, do contrário os dois candidatos nem chegariam ao chefe: “Presidente, esse professor aí não vai dar não, tem uns furos no currículo e ainda por cima não é preto bom que nem o Sérgio Camargo”. Da mesma forma, poderia ter advertido: “Esquece essa médica loura, presidente, ela tocou violão e cantou pra Dilma e tá na idade da loba, ainda por cima. É fria.”
Quanto ao novo ministro que hesita em assumir e, portanto, ainda não mostrou seu potencial, “pesquei” duas declarações suas em manifestações inaugurais públicas, ao lado do general Eduardo Pazuelo: “Há os que pedem que tudo seja fechado, que as pessoas fiquem em casa para combater a epidemia. Há aqueles que afirmam que as pessoas têm que sair para trabalhar. Há diversos pontos de vista”. Com estas palavras, sua excelência não disse absolutamente nada, é como ir à praia, botar o pé na água e dizer que alguns acharão fria demais e outros acharão ótima para um mergulho. E ainda outros vão beber água e coco no quiosque.
A segunda declaração é: “A Igreja, quando passava por uma crise, foi buscar um padre de longe (na Argentina, fora do circuito europeu) para resolver. Não quero me comparar ao papa Francisco, longe de mim (arroubo de modéstia NA). Mas o presidente Bolsonaro foi buscar alguém lá de longe, na Paraíba (Queiroga é de lá), para tentar superar os problemas. Sou um homem do diálogo”. Outra declaração sem pé nem cabeça. Bem mais proveitoso seria anunciar de cara suas primeiras medidas emergenciais contra a pandemia em vez de usar como parâmetro o chefe da igreja católica num governo dito evangélico paranoico.
Se pode servir de consolo, embora deslumbrado, Marcelo Queiroga se classifica um homem da ciência e garante que “nada será na base do cacete. Vamos resolver na base do diálogo”. É um estranho no ninho: Bolsonaro, os generais do governo e os filhinhos queridos empregam a política da borduna em quem atrapalha a marcha da insanidade.
Mas antes disso, vamos ver se ele assumirá mesmo o ministério, porque tem pendências judiciais de cobranças com a União (mais uma falha da turma do Heleno) e não pode ser nomeado para cargo público. Por outro lado, se Bolsonaro conseguir perdoar a dívida, como fez com as igrejas, Queiroga poderá se tornar o quarto ministro da Saúde deste desgoverno. Como bem lembrou o Zé Simão na Folha, “É tetra! É tetra! É tetra!”