A descontinuidade é um dos males do Estado que mais precisamos combater. No campo da cultura, que conheço mais de perto, ela é um inibidor do crescimento, uma erva daninha que bloqueia florescimentos ano a ano, incessantemente, sem recuo. Mas o encosto da descontinuidade está em todo canto, à espreita, prestes a agir, e pior: sempre atuante.
As formas mais nefastas da ação política precisam ser enfrentadas com vigor. Precisamos construir pequenas vitórias, em períodos razoáveis, para ir ampliando o horizonte da esperança.
Além da crise financeira, nos ameaça muito fortemente uma crise humanitária, com a violência fazendo um estrago cotidiano, vasto e ao mesmo tempo escamoteado, mas também visível a todos, sentido, em contato direto com nossos corpos, afetando nossas posturas, humores e emoções.
É importante atentar para a necessidade de que a violência que atinge a todos não nos cegue para o fato de que ela mesma é também desigual, terrivelmente desigual. Vivemos em um apartheid dichavado e maquiado, mas apenas em suas aparições midiáticas ou político-discursivas, porque é também um apartheid ostensivo e imageticamente vibrante.
Uma parcela da sociedade possui menos direitos, sofre mais brutalmente com a mão armada do estado e sofre mais tenazmente com a precariedade da ação pública em todos os níveis. É uma exclusão de milhões, uma perversidade naturalizada que não posso precisar o quanto temos minimizado ou fomentado.
Acho que o fim do apartheid carioca deveria ser nossa luta mais urgente, diária, na qual o nosso engajamento se mostre mais forte, dados a urgência, o risco da morte, a inviabilização de famílias, a arbitrariedade em seu lado mais medonho, traumatizante, desestabilizador e destrutivo.
Sob o caldo cultural do racismo, do preconceito, da estigmatização e da desigualdade feroz, construímos uma sociedade que deveria nos envergonhar, que deveria atingir em cheio o nosso orgulho humano e nos fazer refletir e tatear insistentemente por uma reinvenção. A reinvenção social deveria ser o nosso mais potente tesão. Abandonar hábitos, recriar posturas, rever relações, circular para ser impactado pelo outro, de coração aberto, com a escuta hipersensível dos que tem ânsia de aprendizado e humildade.
“Apartheid” e “guerra” deveriam ser palavras mais presentes em nosso discurso do que “crise”. Porque talvez muitos não percebam, mas ao focarmos apenas no enfrentamento da crise, poderemos ao mesmo tempo abrir o flanco para a ascensão irresistível destas duas outras variáveis. Nosso objetivo pode ser estancar a sangria, mas nossa realização pode ser abrir a jugular.
Precisamos ser os grandes sábios da prioridade. Ou a destruição será ainda mais ampla.