Renata Souza, cria da Maré, está no seu primeiro mandato de deputada estadual. Continua morando na Maré e tem observado o mundo a partir da favela. Acredita que a transformação real da sociedade só ocorrerá através da união e participação de mais mulheres na política. Por isso, para 2019 ela encara seu grande desafio: mulher negra e favelada sendo a voz da favela e periferia diante de um Governo que não atende essas demandas.
ANF – A partir de janeiro começa um novo ciclo na sua vida, como mulher, negra e favelada. Qual é o seu grande desafio para representar os 63.937 votos sendo a deputada da esquerda mais votada no Rio de Janeiro?
RS – O grande desafio na verdade não é só representar os mais de 63 mil votos que eu tive, não é só representar essa gama de pessoas que votaram para que estivéssemos nesse lugar, mas também fazer com que o parlamento seja o espaço de todos e de todas. O maior desafio é estarmos dentro desse lugar que historicamente foi negado para nós negros, mulheres, moradores de favela e periferia. Essa é a casa do povo, mas o povo aqui não pode entrar de chinelo, sem camisa, de bermuda, então que povo é esse que essa casa quer atender? Por isso, não é só um desafio, mas uma perspectiva que eu tenho que com o nosso mandato possa ser aberta as demandas que vêm do povo que mais sofre nessa nossa sociedade desigual.
ANF- Ganhar essas eleições foi um pedido de socorro da população que não estava se sentindo representada, já que esse ano foram eleitas um número expressivo de mulheres negras e faveladas?
RS – Eu acho que mais que um pedido de socorro, é um recado de que nós existimos e podemos ocupar todos esses espaços, pois quando trazemos debates da negritude, da favela e das mulheres, as pessoas não podem pensar que nós só vamos legislar para esse ciclo de pessoas, pelo contrário, o que sabemos é que na sociedade as desigualdades sociais estão mais óbvias na população pobre, na população preta, nas mulheres negras. Logo, se começarmos por aqui, mexemos na parte da sociedade que hoje convive com alto índice de violência, com falta de acesso à educação de qualidade, desemprego e baixa renda que é algo que compromete demais nossa estrutura social. Por isso, precisamos pensar na base para mover as estruturas.
ANF – Como dialogar com um Governo que já afirmou que não entra nas favelas e que não tem demandas para as favelas?
RS – Temos que encarar esse Governo como um Governo da retirada de direitos e o primeiro deles é o direito à vida daquele que mora em favela. Estamos vivendo um período preocupante para o Brasil, para o Rio de Janeiro e para a política em geral, que é o crescimento de uma ala da política extremamente conservadora (no sentido de conservar a desigualdade social). Quando você tem um governador que diz que “vai mirar na cabecinha e fogo” isso já mostra que ele está disposto a cometer um crime contra a humanidade, porque todas as cartas de direitos humanos, seja da ONU, da OEA, entendem como crime contra a humanidade você atirar numa pessoa sem ela ter servido como perigo necessariamente naquele momento. E estamos falando do Rio de Janeiro, onde se confunde facilmente um fuzil com um guarda-chuva, como aconteceu na Mangueira, que confunde um fuzil com uma muleta como aconteceu no Complexo do Alemão, o saquinho de pipoca no Borel que foi confundido com um saquinho de drogas entre outras coisas. Esse é o governo que vai dizer quem é o suposto traficante, que está com a suposta arma. Não sabemos de fato se a pessoa é ou não traficante, ou se a pessoa está de fato ou não com essa arma. Portanto, esse é o tamanho do problema que temos diante de um governador que quer cometer crimes com a comunidade.
ANF – Qual é a sua bandeira?
RS – Meu desafio e vontade são de fazer com que possamos pensar em políticas públicas para diminuir o número de homicídios, especialmente da juventude negra pobre e da favela, cujos índices são assustadores. Cada 10 homicídios no Brasil 7 são desses jovens negros moradores de favelas ou periferia, então é preciso fazer programas e políticas públicas que possam reduzir esse número. Sabemos quem está morrendo na nossa sociedade, queremos apresentar meios que combatam e sirvam para evitar o feminicídio e o genocídio da nossa população preta.
ANF- Em 2019 o que será feito, politicamente falando, para ter uma resposta sobre o caso Marielle Franco e Anderson Gomes?
RS – A nossa eleição já foi uma forma de pressionar o Estado. Imagina quando após a execução sumaria da Marielle, várias mulheres negras decidem ocupar esse lugar? Isso não quer dizer que essas mulheres negras necessariamente estavam militando em um partido político, mas elas estavam fazendo política de outras formas, seja nos movimentos sociais, seja com as ONGs que trabalham e organizam. Diante de uma execução tão bárbara como essa, tão covarde, essas mulheres falam “Não, a gente tem que ocupar mesmo a política, porque lá podemos definir a vida das pessoas.” E é lá que se define o preço do pão, da passagem, o salário dos professores, ou seja, uma série de coisas. Definimos a vida das pessoas dentro desses espaços, então se as mulheres, mulheres negras e pobres não chegam nesse lugar, dificilmente a Alerj vai refletir as demandas reais da população. Se hoje, eu falo de segurança pública, se é o tema que mais mexe comigo, é porque eu vivo isso cotidianamente dentro da favela, e eu sei quanto que as pessoas estão morrendo cotidianamente com essa política pública, completamente, racista e discriminatória. Quando vamos para esse lugar é para fazer a diferença mesmo e essas mulheres se moveram diante da execução sumaria de uma de nós. Uma de nós foi executada, então todas nós temos que nos mexer. Vindo para Alerj e outras mulheres Brasil a fora que conseguiram uma colocação na política institucional. É estar aqui, lembrar da memória da Marielle e fazer com que os debates de superação, da discriminação, da criminalização da pobreza, porque existe esse processo de criminalizar quem é pobre, sejam levados à frente. Óbvio que estar aqui é ter uma capacidade maior de pressionar, porque numa sociedade onde a desigualdade social é muito grande, uma deputada pressionando é muito diferente da pessoa Renata que era estudante na Maré. Não é qualquer coisa chegar num lugar onde mais de 60 mil pessoas votaram para eu estar aqui e eu não estou aqui à toa, isso é muito simbólico no sentido de ter mais elementos para pressionar o Estado, a polícia civil e federal. De fato, fazer justiça, porque queremos que a pessoa que mandou matar a Marielle e a que matou sejam responsabilizados.
ANF – Pelo ocorrido com Marielle, você tem medo que aconteça algo com você, já que estará à frente de tantas demandas?
RS – Nós que vivemos a violência de maneira tão constante e presente precisamos estar na linha de frente, porque o medo não pode nos engessar, o medo não pode nos paralisar. Óbvio que temos medo, mas esse medo é para dar força para nós continuarmos na luta. Se uma parcela dessa população tem medo é porque os direitos dessa população não estão sendo garantidos, então a nossa vinda é para que ninguém mais tenha medo.
ANF – Existem inúmeros casos de feminicídio e temos a Lei Maria da Penha que é uma das leis mais importante a favor das mulheres, mas infelizmente ainda há algumas brechas (o agressor que paga uma fiança e é solto ou apenas faz medidas socioeducativas e na maioria dos casos, saí da cadeia e mata a companheira). Como deputada como será sua atuação nesses casos de feminicídio?
RS – O nosso problema não é a falta de lei, mas que as leis sejam cumpridas. A Lei Maria da Penha é muito importante, porque responsabiliza em determinado grau aquele possível agressor, mas ao mesmo tempo sabemos que isso é um paliativo. Ou construímos uma sociedade em que as mulheres sejam respeitadas desde a infância e que não sejam encaradas como propriedades dos homens, ou vamos deixar que esses homens sejam sempre os algozes. Precisamos dar um passo para trás, a lei é importante, mas enquanto não tivermos mecanismo para evitar que essa mulher morra e que esse homem mate, não vamos conseguir mudar esse quadro. Portanto, nosso trabalho aqui na Alerj é pensar em políticas públicas que possam trazer o debate sobre machismo, que esses debates estejam em espaços públicos, principalmente, em escolas, pois sabemos que a escola tem essas possibilidades de ser o espaço de debate sobre a tolerância social, sobre o reconhecimento. Quando trabalhamos num processo educativo e pedagógico sobre respeito às diferenças, conseguimos evitar que chegue até a lei. Claro que isso não é da noite para o dia, mas precisamos começar a fazer esse trabalho, porque é um trabalho constante. Precisamos pensar e formular políticas públicas, que possam trazer temas como machismo, racismo, a lbgtfobia, como central na educação dos nossos jovens e dos nossos adultos.
ANF – Gerou uma grande expectativa na sua vitória nas urnas, as pessoas te elegeram para ser a voz delas. Passa um filme na sua cabeça quando você para pensar na Renata da Maré e onde você se encontra hoje?
RS – É uma responsabilidade muito grande, é muita expectativa em relação ao trabalho que vamos desenvolver na Alerj e na política institucional. Isso traz uma responsabilidade que é muito maior que eu, que é maior que os movimentos que eu milito, do partido que eu faço parte, é maior do que eu possa prever. Essa Renata da Maré é uma vivência muito importante para que possamos encarar o Estado como o lugar de luta pela dignidade humana. A Renata que fez pré-vestibular comunitário na Maré, que fez jornalismo, comunicação comunitária, entrou na universidade, fez mestrado, doutorado e agora está no pós-doutorado. E hoje é uma deputada estadual, precisa ser amparada por toda uma sociedade que entende que estar aqui não é uma questão pessoal, não é uma questão da Renata, é uma questão da sociedade. Precisamos que a pessoas entendam que meu mandato é um meio para garantir a dignidade humana e para que as lutas sociais possam reverberar no Estado.
* Matéria do Jornal A Voz da Favela edição de janeiro de 2019