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Dois filmes a que assisti em seguido me deixaram mais convencido do que já estou, de que o cinema conspira contra a maquinação da direita internacional, de jogar o planeta na aventura do antropoceno, termo que qualquer criança do fundamental conhece.

Ironia à parte, não deixem de assistir, revoltado leitor e não menos revoltada leitora, pois são duas peças inspiradoras de fundas reflexões a partir da máxima de que a arte é revolucionária e libertadora!

Tenho certeza de que o governo brasileiro impediria, se pudesse, Hebe, a Estrela do Brasil. Da mesma forma, Coringa não iria às telas se Trump tivesse algum poder sobre a indústria cinematográfica americana.

São dois momentos de afirmação cultural desta época de trevas e medo, de desespero e dor.

Comecemos pela produção nacional. Muita gente na sessão em que eu estava se decepcionou por dois motivos: o filme não é sobre a vida de Hebe Camargo, não a mostra no começo da carreira com Mazzaropi, sobrancelhas de Monteiro Lobato e cabelos negros como a asa da graúna. Mostra um episódio, seis ou sete anos da apresentadora na Band e no SBT, quando encarou e venceu a luta contra a censura aos programas de televisão no Brasil.

Cabe lembrar que o fim da ditadura levou ao poder o grupo de Tancredo Neves que, mesmo morto e sepultado, havia nomeado o ministério de José Sarney, o bastardo da história. E na equipe estava Fernando Lyra, pernambucano, pedetista, na Justiça, que declarou extinta a censura no Brasil e chamou Sarney de “vanguarda do atraso”. Durou pouco, mas deixou terreno para Hebe sustentar a briga que enfrentaria com a coragem bem retratada na tela.

Além de interpretações estelares, o mérito maior da obra é escancarar a censura dos donos das emissoras, os concessionários do serviço público de teledifusão, deformação de origem que compromete através dos tempos as comunicações em países periféricos como o nosso.

Hebe via seus telespectadores como iguais, parentes, amigos, colegas no sentido oposto ao que dá ao termo o capataz Silvio Santos. O filme sobre Hebe Camargo faz lembrar o Brasil atual em quase tudo, por isto a plateia coxinha de Copacabana na sessão vespertina torceu o nariz e preferiu comentar os ciúmes doentios do marido dela, coisa do seu universo existencial.

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Por sua vez, Coringa é a história do vilão maior do Batman, super herói rico, herdeiro único do império paterno, que defende o patrimônio e os inocentes brancos das hordas criminosas.

Estas características são expostas pelo contraste com o Coringa, filho de mãe solteira, empregada doméstica, doente mental sem tratamento adequado e manipuladora do filho também conturbado.

Coringa trabalha como palhaço de rua, de hospitais, de festas e onde mais o patrão o enviar. Certo dia sofre ataque de adolescentes, leva uma surra coletiva e começa o processo de transformação no fora da lei, que somente se concretiza quando sua mãe morre e o povo sai às ruas com máscaras e fantasias depois de ser chamado de palhaço pelo prefeito por protestar contra a interminável greve dos lixeiros.

Coringa é a insatisfação popular com a administração pública do estado policial e seus reflexos no cotidiano da gente. É a revolta contra brancos ricos de Wall Street acostumados a pisar pessoas por puro prazer. Gotham é Nova York, é Los Angeles, é Chicago, é os Estados Unidos do capitalismo extremado dos nossos dias.

Coringa é produto da opressão e da miséria da sociedade da abundância, é um anti-herói sem escrúpulos nem remorsos, vive das migalhas e sabe aproveitar as raras chances que o sistema lhe proporciona, como a entrevista ao programa de maior audiência da tevê.

Transposto para o Brasil, seria filho de qualquer comunidade carente das nossas periferias, com requintes sutis, como as sirenes e os reflexos das rotolights presentes em grande parte das cenas. Inserido na nossa realidade, Coringa seria a resposta extrema ao estado policial, às milícias, ao tráfico e aos governos corrompidos e incapazes.