A facada, a dor, e quem sente

Créditos - Reprodução da Internet

Mais uma vez no metrô.
Dessa vez eu estava sentado, e à minha frente um rapaz estava no meio de um processo criativo, com fones de ouvido, compenetrado em seu mundo, dividido por olhares reflexivos ao nada e em seu caderno vermelho. Um moleskine.
Pude até me enxergar nele, visto que anos atrás provavelmente seria eu ali escrevendo num caderno da mesma cor, e da mesma marca.
Minha namorada sorriu e disse: “Você não é o único.”
E que bom que não!
Essa crônica poderia ter sido dele, mas ele estava ouvindo música.
Não, ele não é pior ou melhor que eu. Aquele era o momento dele, e no meu momento ali estava, fruto de um acaso que não creio, mas sentado ao lado de uma criança de aproximadamente dez anos, que perguntava incessantemente à sua mãe:
“Mamãe, eu sou negra?”
O barbudo de camisa quadriculada em pé do outro lado até olhou pra trás pra averiguar se era isso mesmo que a menina estava perguntando.
“Mamãe, eu sou negra? Eu não quero ser negra. As pessoas dizem que eu não sou.”
A mãe respondeu: Você é sim.
“Mas por que eu sou negra? Só porque todo mundo da minha família é eu tenho que ser?”
“Sim.”
“Mas por que?”
“Porque Deus quis.”, respondeu a mãe.
A menina revoltada então retrucou:
“Tudo bem. Vou perguntar pra minha avó pra saber se eu sou negra mesmo.”
Tão pequena…

Qual o peso de ser negro num país em que a ironia persiste em dizer que não existe racismo?
A alça da lancheira pendia no ombro da mãe: “Maria Eduarda”, estava escrito de vermelho sob um desenho da Mônica dos conhecidos quadrinhos de Maurício de Souza.
A mãe, agarrada à barra de ferro do vagão, de olhos pretos e profundos que pulsavam subtextos duros do dia-a-dia. É como se o tom da pele fosse realmente um defeito, um fardo, e ela mal sabia o que dizer para a própria filha.
Deus caprichou na direção de arte daquela cena, e o caderno vermelho do escritor alheio me remeteu ao sangue do filme de suspense que eu vi, que me fez voltar de metrô pra casa com a namorada grávida. Mas o sangue ali, e o suspense, eram a própria realidade de quem possui a própria facada, a própria dor, e o próprio sentir.