A farda e a epifania

Charge de Duke retrata o dinossauro

Digam o que quiserem, falem até doer a língua, a verdade está diante dos nossos olhos, cristalina, nua e crua: Bolsonaro adora uma farda. Não pode ver um fuzileiro de bibico ligeiramente enviesado para a direita sobre a testa que logo bate continência. Dizem à boca miúda que foi assim no Arsenal de Marinha no Rio de Janeiro logo que ganhou a eleição. A mesma relação mágica se viu na Escola Militar das Agulhas Negras e mais tarde na Vila Militar e em outras casernas onde circulou entre o resultado das urnas e a diplomação. A rigor, nosso futuro presidente quase que só pôs os pés em quartéis e assemelhados, e é natural que assim seja, porque antes do terno de político eleito, seu uniforme era a farda do exército de Caxias.

Na verdade, Bolsonaro representa o presidente militar vestido de civil, o sonho autoritário renitente, espécie de vingança por não sermos gratos pela ditadura de 1964 a 1985. É grande a parcela da sociedade que julga aquele período como de paz e prosperidade, sem violência urbana nem corrupção e, graças à Globo, também vê os governos petistas como de simples ladroagem, a despeito dos números mostrarem, agora mesmo, que o dinheiro administrado pela família Queiroz é superior ao desvio atribuído a Lula. O Brasil é um país que não aprende com a história, insiste no anticomunismo, no combate às drogas, na proibição do aborto e destrói a democracia para combater a corrupção. Somos, como disse um político uruguaio à época do golpe contra Dilma, “o irmão grande e bobo que existe em muitas famílias”.

À vontade no seu restrito círculo social e político, o presidente expôs sua admiração também por civis uniformizados como os alunos do Comando de Operações Táticas da Polícia Federal, em Brasília. Chegou a “pagar” flexões juntamente com os rapazes sem sequer desabotoar o paletó. É um adolescente tardio em busca de afirmação, e como tal tem liberdade apenas para gracinhas no meio militar. Não deve ser levado a sério em assuntos de estado, porque lhe escapa à compreensão a complexidade da geopolítica mundial dos dias atuais. É dado a certa retórica vazia, com sentimentos patrióticos abstratos e desligados da realidade.

Basta ver a expressão de satisfação no seu rosto em algumas fotos feitas entre os seus. Percebe-se, nestas ocasiões, o pendor que lhe infla a ânima e o faz discursar sobre a pátria, o país, a nação como se fossem uma santíssima trindade particular e positivista. Eriçam os pelos da nuca, desprende-se a fagulha que incendeia o “amor servil pelo Brasil”, incondicional qual o amor a um filho – não a uma filha, note-se a sutileza da afirmação do macho alfa; sim, afinal como negar a superioridade dos patrícios sobre as Patrícias maiúsculas como a Galvão e a Pilar, ou as diminutas patricinhas deste enorme rincão?

Norteado pelos mesmos conceitos e preconceitos, Bolsonaro propõe militarizar o ensino em todas as escolas do território nacional. Não basta ser reacionário civil, as crianças devem aprender desde tenra idade que obedecer é crescer e questionar é rebeldia, o que, no final das contas, será fraqueza moral e de espírito. Ainda nos cueiros, meninos aprenderão ordem unida e brincarão com soldadinhos de chumbo de meio século atrás. Meninas pentearão bonecas e arrumarão casinhas de mentirinha. Serão príncipes e princesas de um reino entre o Encantado e Deodoro. Nos lares reais reinará absoluto o cabeça do casal com seu machismo secular, suas certezas e manias. Às esposas, submissas como freiras em procissão, restará espiar pela janela o pomar de antigamente na expectativa da epifania reveladora do significado da vida e das coisas que virão depois do juízo final.

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Luiz Augusto Gollo
Editor, escritor e redator. Cinco décadas escrevendo para jornal, revista, televisão, vídeo, deputado, senador, ministros e até mulher de governador. Também para agências de publicidade, roteiros vários, campanhas políticas próximas e remotas...sem falar em ficção para televisão e livros e outras publicações. Ah, tem também a apresentação de programas de rádio e televisão, em Brasília e no Rio de Janeiro, de transmissão local ou nacional, de pouca ou muita audiência, sempre rompendo limites políticos, estéticos, morais e outros.