Domingo. 19h.
O bolo de chocolate com morango, feito pela vizinha e decorado com flores comestíveis já estava no fim. A vela já estava apagada e o parabéns já tinha terminado.
Na parede de tijolo sem reboco, um cacho de bolas rosas. Nove ou 12, em média. A mesma quantidade de convidados amarrotados na minha pequena sala-ozinha-quarto. O karaokê ligado no último volume, seguido de beats improvisados.
De repente, a proposta:
– Que tal um pique-esconde?
– Ah, não, pique-lateira é mais legal…
E como em um momento de “sanidade”, alguém grita: “Vocês estão loucos? É muito perigoso”.
Como a “heroína” do momento, eu os convenço de que não teria o que temer. Foi quando o medo da localidade, que outrora inspirava as brincadeiras de bola de gude e peão, mas hoje é inundada de medo, viveu um suspiro de alegria nas coisas simples.
0h30. Grito que a brincadeira acabou, afinal, segunda é dia de aula.
Pés sujos de poeira e um coração acelerado de euforia.
A gente se acostuma a ter os sonhos frustrados e ter o medo como domínio. Se acostuma a não falar com a vizinha nova, a não dar “bom dia” e a já sair com a cara amarrada na segunda-feira de trabalho.
A gente se acostuma com as giradas sincronizadas da chave na porta, a verificar três vezes se a fechadura está segura, com o fato de que a vida é dura, que avanços já foram feitos e que, como em time que está ganhando não se mexe, é melhor não levantar bandeiras.
Bem sei que não deveríamos, mas a gente se acostuma com o medo do que trazia no ventre e mesmo que ali não exista mais vida, espontaneamente, se cala pelo medo do julgamento externo. A vivenciar o silêncio, mesmo que essa dor nos destrua.
O short não pode ser curto, o decote precisa ser comportado e o batom, nude. A gente se acostuma com o fato de que o aumento de 54% nas mortes das nossas segue impune e com o genocídio escrachado com a sirene de trilha sonora. A gente se acostuma com 18 pênis dando palpite no nosso ovário, e segue se acostumando com o tapa doído, abafado, estilhaçando nossa voz.
Segue sempre vendo o corpo sendo arrastado, e segue sempre calado ao som de cada grito no meio da favela. A gente se acostuma com os dados, com os muros alvejados, com os livros ensanguentados pelo pátio da escola.
Sigo pensando no quanto a gente se acostuma, mas não deveria, a ter vozes abafadas pelo medo da verdade ser conhecida. A gente se acostuma a ver coisas simples se tornarem privilégio de quem nem valoriza.
A gente se acostuma, mas não deveria. No entanto, em meio à tanta dor e pranto, sigo me acostumando a juntar pedaços e retalhos de inspirações para seguir sempre, como nesse texto em que Lorelay Fox e Marina Colasanti estiveram tão presentes.