Rabino Nilton Bonder
Rabino Nilton Bonder Foto: Angelo Duarte / Divulgação

Num período de enorme ressaca política,  é bom  nos guiarmos por ideias que nos levam para além da mediocridade reinante no cenário político nacional.

Até por que são ideias de um dos autores brasileiros mais lidos do mundo: o rabino Nilton Bonder. Há cerca de dez anos atrás o vi dando uma entrevista para a então TVE, afirmando sem titubear que o mundo caminhava para o socialismo.  Mas quem falava seriamente em socialismo em pleno ano 2000? Um rabino?

Lá por 2004, mesmo embalados pela ascensão do PT (Partido dos Trabalhadores) ao poder, sabíamos que Lula certamente não faria um governo socialista.  Quem sabe faria alguma mudança agrária que pudesse levar o nome de “reforma”. Como vimos, nem isso.

E então veio a enxurrada de decepções políticas iniciadas com o “mensalão”,  que marcaram  para sempre a minha geração que começou a votar com a redemocratização, no fim dos anos 80, e nem titubeava na hora de votar no PT.

O refrão de um sambinha que escutei recentemente sintetizou minha decepção: “até quem não tirava, tirou”.

Bonder, no entanto, enxerga essa decepção sem leniência, mas com generosidade.

Para ele,  a ascensão do Partido dos Trabalhadores à Presidência da República foi um típico “ato inflamatório correto e importante” para a sociedade brasileira. Mas quando o PT, sentido-se “dono da verdade” , se acomodou em seus cargos e benefícios,  o inimigo de seu projeto passou a não ser mais a direita, mas ele próprio.

Explicando melhor:  o rabino chama as mudanças sociais de “processos inflamatórios”.  E é nesse sentido que  ele tem certeza de que as transformações pelas quais o mundo vem passando nos levam em direção ao socialismo. “ A não ser que no meio do caminho nos acometa um processo inflamatório grave que nos faça morrer”. Bom lembrar que  a inflamação, ao contrário da infecção, não é causada por um agente externo ao nosso corpo. Ela é causada por nós mesmos.

Em suma, sempre há um custo grande em manter esses processos inflamatórios, pois neles as pessoas tendem a recolocar uma nova opressão, ou nas palavras de Bonder:  “um novo faraó”.

Ele acha que esse processo em torno dos governos do PT estão servindo para fazer a sociedade brasileira amadurecer politicamente, porque as pessoas continuam “cultivando a fantasia de não acolher que sua humanidade é e será sempre imperfeita”.

Talvez aí resida o espelho desconfortável que o PT representa. Não somente os políticos que são corruptos no Brasil. A sociedade brasileira está permeada de práticas levemente ou pesadamente corruptas de cima a baixo de seu espectro social. E é preciso encararmos isso de frente.

De fato, só depois de assumirmos e acolhermos nossos erros, crescemos.  E  o Brasil é uma sociedade em amadurecimento. Temos 500 anos de colonização política,  cultural e econômica nas nossas costas. Fomos por mais tempo parte do projeto de outros. Muito lentamente e lutando sempre contra esses colonizadores –  também internos – é que fomos constituindo uma identidade nacional.

As jazidas de socialismo

Para quem se acostumou com a ideia geralmente mal-compreendida de Marx de que “a religião é o ópio do povo”,  Bonder responde de maneira inusitada. Bem judaicamente, associa “socialismo” à “era messiânica” que é para onde, acredita ele, a humanidade está caminhando. Para ele, “a matéria-prima do socialismo é a religiosidade”, em torno da qual formam-se “jazidas comunitárias”, onde as pessoas experimentam coletivamente –  e geralmente  “de boa-fé” – que a vida não se reduz “a eu por mim, a eu sozinho”, algo bastante significativo dentro de sociedades cada vez mais individualistas e consumistas, onde as pessoas perderam seu “capital comunitário” e se limitam a satisfazer seu lado animal, que é o do atendimento dos desejos imediatos.

Afinal, o homem é o único bicho que sabe que vai morrer e tem que lidar com isso a vida inteira.  Se ele se aprisiona na busca para satisfazer os seus desejos individuais do aqui e agora, nunca terá satisfação alguma, pois o sentido do viver se perde no meio da reiterada insatisfação.

O problema dos regimes socialistas realmente existentes foi que após a revolução – ato inflamatório por excelência – quando a insatisfação popular ateou fogo nas estruturas dominantes das sociedades, a inflamação persistiu, devorando seus próprios filhos.

Muitas vezes as utopias levam as pessoas a lugares inviáveis.  E nada acontece de uma hora para a outra. Sempre será um processo.

A fuga dos judeus do Egito continua a ser para ele a melhor metáfora desta busca pela emancipação humana que tem nas utopias anarco-socialistas sua melhor tradução laica.  Os 40 anos que os hebreus demoraram para chegar  à “terra prometida” revela, justamente, a dificuldade que  tiveram de efetivamente “tirar o Egito dentro deles mesmos” e se submeterem às novas regulações – os 10 mandamentos – que tinham que ser implementadas para viverem juntos a partir da emancipação recém-conquistada. O momento que Moisés recebe a Lei é o momento em que, após a libertação, os judeus têm  que se submeter às novas regulações  éticas expressas por Deus.  Regulações que devem baixar a fervura da “inflamação revolucionária”.

“O que Deus quer é que você não mate, não roube, não inveje o outro, não produza falsidades, não seja corrupto. Isso é o que Deus quer. Ou seja, Deus quer que você seja do bem, que você seja um ser social não só preocupado consigo, mas com a sociedade, com seu próximo. Isso é a base de toda a estruturação ética que nós temos no Ocidente”.

A inflamação revolucionária é importante, mas também é fundamental para que suas realizações permaneçam, que se saiba quando baixar o calor para que ela não devore seus próprios filhos. E nas suas palavras, aí vai uma ótima síntese do sentimento que a maioria dos ex-petistas que não são “anti-petistas” sentem:

“É muito comum todos os movimentos messiânicos acabarem aportando um lugar de profunda decepção e desapontamento. Isso aconteceu em vários momentos da história utópica do ser humano, onde as pessoas sonham em trazer um tempo que só pode ser construído com todo um processo e onde você quer fazer a coisa mais difícil que é blindar o ser humano de suas próprias fraquezas”.