Eu tinha cerca de 17 anos. Era fim do regime militar. Eu era um jovem de estatura baixa e muito franzino. Numa noite chuvosa eu regressava para casa. Cenário: favela de Vigário Geral, por volta das 22h.
O dia tinha sido puxado no curso de Desenho Mecânico, no Senai de Benfica e, depois, na Escola Técnica em Mecânica, em Marechal Hermes, onde eu cursava o segundo grau. Eu carregava nas costas, como de costume, uma mochila repleta de livros e uma régua T. Ao subir a passarela que dava acesso à favela, fui abordado por quatro policiais. Como testemunha, tinha duas senhoras que estavam retornando de um culto evangélico. Sem falar nada, encostei-me na parede e permiti que os policiais abrissem minha mochila. Não satisfeito, um policial jogou todos os meus livros e cadernos numa poça d’água.
Ao me deparar com a cena humilhante, e já chorando, reclamei com o policial que ele tinha destruído meu trabalho de escola e por causa daquilo eu iria tirar zero. O policial respondeu que todo favelado era um zero à esquerda. Abaixei-me e comecei a pegar meus livros, enquanto murmurava, chorando copiosamente e dizendo que não era justo o que ele estava fazendo com um jovem que acordava às 4h todos os dias para estudar.
Sem que eu pudesse prever, o policial me deu uma coronhada do lado esquerdo da minha mandíbula. A força do impacto da escopeta 12 no meu rosto foi tão forte que na hora eu senti uma dor enorme e percebi que minha mandíbula havia sido fraturada. Não tive tempo de fazer mais nada. Nunca senti uma dor tão imensa. O policial só não me matou, porque as duas senhoras começaram a orar e pedir “pelo amor de Deus”. Eu – atônito, zonzo, arrasado – só pedia para me deixarem ir pra casa.
Desci a escada cambaleando e adentrei pela favela. Alguns bandidos que me conheciam perguntaram se estava tudo bem comigo. Eu disse que sim. Quando cheguei em casa, as lágrimas se misturavam com o encharcado da chuva, mas, mesmo assim, tive o cuidado de secá-las para que minha mãe e meu pai não soubessem o que aconteceu comigo. Fui direto para o banheiro e tomei o banho mais demorado da minha vida. Chorava muito mais pela covardia do que pela fratura. Quando fui escovar os dentes, não senti minha língua e, só aí, pude reparar que o lado esquerdo do meu rosto estava mais profundo. Desabei, chorei e pedi a Deus para sumir dali. O policial tinha quebrado dois dentes da minha boca e a única coisa que eu tinha de valioso era o sorriso e as duas covinhas no rosto.
Passei dias sem poder ir à escola. Para poupar meus pais, eu dizia que estava com enxaqueca. Aos professores, eu dizia que havia sofrido um acidente ao cair da bicicleta e aos amigos eu repetia a mesma coisa.
Confesso que passei meses querendo me vingar da covardia que fizeram comigo, mas minha determinação para o estudo era mais forte. Eu sabia onde queria e teria que chegar. E cheguei!
Estudei oito anos no Senai (cursos: ajustador, fresador, torneiro, desenhista, ferramenteiro, projetista, robótica e pneumática) e cinco anos no Senac (cursos: desenhista de arquitetura, administração, inglês comercial e até um curso de como fazer bombril). Além dos cursos técnico em mecânica, datilografia, programação de computadores, silk-screen, serigrafia e gráfica off-set. Eu tinha um foco: sair do ciclo da pobreza. E consegui!
O que aconteceu com o policial que me deu coronhada, não sei. Mas Deus abençoou meu esforço e ainda me concedeu a glória de me formar em Sociologia pela UFRJ e, também, ter feito mestrado em Planejamento Urbano numa das mais respeitadas universidades americanas, o Massachusetts Institute of Technology (MIT) . Por tudo que fiz, consegui abrir uma empresa de construção nos EUA e tive a honra de formar duas lindas e batalhadoras filhas lá. Ainda fui abençoado o suficiente para ajudar minha família a se mudarem da favela. E, para provar a mim mesmo que eu estava no caminho certo, consegui pagar com meus próprios recursos várias cirurgias reparadoras e voltei a sorrir o sorriso de quem soube vencer sem se vingar.
Hoje, sorrio e afirmo, com a consciência tranquila, que intervenção militar em favela é farsa. Ah, Deus ainda me concedeu a graça de ser poeta. E fanfesteiro.
Por isso, gostaria de deixar um recado aos milhares de meninos e meninas que estão sendo humilhados com revistas em suas mochilas nas favelas do Rio de Janeiro, ergam vossas cabeças e sigam o caminho que Deus trilhou para vocês: vitória! A dor passa e o sorriso de quem vence é a certeza de que felicidade existe para quem insiste em ser livre.