Carolina Maria de Jesus – Quarto de Despejo Diário de Uma Favelada
Quando falamos de literatura brasileira um dos primeiros pensamentos que vêm a nossa cabeça é a ideia de que se trata de algo extremamente rebuscado e quase impossível de ler.
Essas noções derivam da forma de aprendizado que estamos acostumados a ter na escola, e que estabelecem limites e determinam o que é e aquilo que não é literatura, e para não desviar desses conceitos, professores e educadores acabam se apoiando em obras clássicas e de reconhecimento nacional, lançando mão de qualquer outra forma literária que possa aproximar o estudante de seu cotidiano e de sua vivência social.
No entanto, a literatura tem diversas nuances e uma delas se aproxima muito das favelas, sem abrir mão de boas histórias, e uma escrevivência que permite ao aluno periférico se entender enquanto cidadão do mundo e se colocar como um possível narrador de sua própria história.
Uma das percursoras da literatura periférica é a escritora Carolina Maria de Jesus. Ela vivia debaixo de uma ponte, as margens do Rio Tietê em São Paulo, na Favela Canindé, quando foi descoberta por um jornalista que lhe ajudou a publicar suas histórias. Carolina escreveu um livro que fez sucesso internacional e a tornou conhecida em todo o Brasil em sua época.
O primeiro livro publicado da autora fala justamente de sua vivência na comunidade. Quarto de despejo é um livro que narra a história de uma mulher da favela em todas as suas facetas.
Carolina fala da relação com os vizinhos, de como sobrevive vendendo papelão e da violência a que estão sujeitos aqueles que estão à margem da sociedade. A escritora critica os políticos que não fazem nada para mudar a situação em que ela e seus pares vivem e narra as dificuldades de criar crianças na favela.
O retrato descritivo da autora é fiel a uma realidade única e nos ajuda a entender como era viver na periferia nos anos 60. Mais que uma biografia, a obra é um retrato de um Brasil esquecido, onde os pobres são excluídos de todos os espaços possíveis e de todos os direitos básicos.
“(…) quando começaram a demolir as casas térreas para construir os edifícios, nós, os pobres, que residíamos nas habitações coletivas, fomos despejados e ficamos residindo debaixo das pontes. É por isso que eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres somos os trastes velhos. (JESUS, 2013, p.195)”
Conceição Evaristo – Olhos D’água
Conceição Evaristo é uma escritora negra e foi Professora Doutora da Pontifica Universidade Católica de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. A romancista nasceu em uma comunidade de Minas Gerais, trabalhou como empregada doméstica e em 1973 mudou-se para o Rio de Janeiro para cursar o magistério em Letras.
A autora escreveu diversos livros, mas os seus maiores sucessos são Ponciá Vivêncio (2003), um romance que trata de temas como a discriminação de raça, gênero e classe; e Olhos D’água (2014) uma obra de 14 contos sobre a favela, onde a escritora dá voz a diversas pessoas que passariam despercebidas em nosso cotidiano. As obras da professora são marcadas pelo lado social e revelam tudo o que há de mais real na vivência de alguém que reside em favelas ou comunidades.
O título da obra Olhos D’água faz referência aos olhos da mãe da autora, em um momento muito emblemático de choro profundamente emocionado e uma tentativa por parte da escritora de entender o porquê de sua mãe chorar. Os contos que compõe o livro são carregados de poesia e possuem pesos simbólicos em suas personagens, pois nenhuma delas goza de prestigio social e moram e vivem na favela (em sua maioria).
Uma das narrativas mais emblemáticas da obra de conceição é o conto de título Maria, que narra a história de uma mulher negra que está voltando do trabalho para sua casa. Maria volta de ônibus e traz em sua sacola restos de comida que sobrou da festa de sua patroa, e um corte na mão feito com uma faca. No entanto, a personagem é surpreendida por um assaltante, que decide assaltar todos os passageiros, menos a mulher.
O assaltante é nada mais, nada menos que seu ex-marido. Os passageiros estranham a mulher não ter perdido seus pertences e começam a alegar que a mesma estava junto com o homem. Maria é acusada, xingada e as imagens que temos de sua fala final são de frutas rolando pela escada do coletivo.
Rodrigo Ciríaco – Te Pego Lá Fora
Rodrigo estudou História na Universidade de São Paulo, é engajado nas lutas sociais e visita diversas escolas públicas para levar poesia e reflexão para os jovens. O jovem paulistano é oriundo de uma comunidade da Zona Leste e também é escritor. Seu livro mais emblemático tem um título peculiar, que nos remete a brigas na saída da escola.
Te Pego Lá Fora tem menos de sem páginas, mas nelas estão derramadas toda a experiência de Ciríaco em sala de aula. O livro está dividido em quatro grandes partes, denominadas Verão, Outono, Inverno e Primavera e todos os contos se passam em escola pública. Na obra, o autor decide dar visibilidade para muitos funcionários esquecidos, entre eles o próprio professor e o papel que este desempenha em sala de aula e fora dela.
Bedéis também tem seu momento no livro e a maior parte é dedicada na relação aluno-professor.
As histórias ali contadas remetem a gravidez na adolescência, suicídio, assédio e até mesmo distúrbios alimentares. A Literatura Periférica do autor mostra de relance o que há de mais real nas escolas públicas de favela e como o professor age diante desses relatos.
Uma das histórias narradas no livro leva o título de Obituário, e narra o desespero de um professor que não vê mais luz na vida, o mestre narra seu próprio suicídio e os percalços que levaram ele aquele ato sem volta.
Marcelo D’Salete – Angola Janga
Marcelo é graduado em Artes Plásticas pela Universidade de São Paulo e mestre em História da Arte pela mesmo centro acadêmico. Os livros do autor são em quadrinhos e com boas histórias narrando o povo negro e suas dificuldades. O escritor também foi indicado a diversas premiações internacionais e na obra Angola Janga narra a luta do povo negro no Brasil.
D´Salete também faz um trabalho de pesquisa para compor suas obras, e retratar de forma fiel aquilo que aconteceu. Podemos notar essa preocupação em Angola Janga, onde o autor além de fazer os quadrinhos, dá as referências devidas dos atos ali ilustrados. Os quadrinhos do escritor dão ao leitor um gosto de poder sentir e perceber visivelmente o que cada personagem está passando naquele momento.
As ilustrações são em preto e branco, e remetem ainda mais a um dualismo existente entre povos. A história de Palmares narrada por Marcelo coloca o povo negro como devidos defensores de seus direitos, e um povo que não é de forma alguma entreguista, mas que defendem até o último momento todos os seus direitos e o direito a viver como iguais com os brancos.
No entanto, o escritor também revela em sua obra os desafios da comunidade em se estabelecer em algum lugar em que não sejam perturbados, coagidos ou sofram qualquer preconceito. D´Salete rompe com as histórias comuns e tira o preconceito de um lugar comum para dizer suas verdadeiras origens e causas. As causas dos povos negros, e da comunidade de Palmares.
Por que os ler e apoiar
A Literatura Periférica rompe com qualquer máxima moralizante existente, ela abre mão de tudo aquilo que categorizaria um povo ou sua comunidade para dar voz a histórias cotidianas dessas pessoas. A favela, que quase nunca tem status em qualquer obra clássica e sequer é citada como lugar de histórias, é atravessada pela experiência e poesia de autores que escrevem a si a suas vivências pessoais.
Nessas obras cada história contada tem um lugar e uma representação única que somente as pessoas que vivem em favela podem compreender de cara ou entender. É algo que é inexplicável, mas finalmente conseguimos encontrar livros que narram não só nossa dificuldade, mas mostram como realmente somos e a dificuldade que passamos diariamente.
Ademais, é preciso apoiar esses autores e lhe dar boas vindas ao campo literário, pois é uma revolução poder ver e sentir que finalmente estamos escrevendo por nós mesmos. Tal atitude também incentiva àqueles que nunca se sentiram representados pela literatura clássica brasileira e que podem, finalmente, escrever com lápis e borracha sua própria história como ela realmente é.
Os Livros
Referências Bibliográficas
Livraria Cultura. Quarto de Despejo Diário de uma Favelada. Acesso em: 23 de outubro de 2019. Disponível em: www.livrariacultura.com.br/p/livros/didaticos/paradidaticos/leitura-adaptada-facilitada/quarto-de-despejo-42961748
Amazon. Olhos D’água. Acesso em: 23 de outubro de 2019. Disponível em: www.amazon.com.br/Olhos-d%C3%A1gua-Concei%C3%A7%C3%A3o-Evaristo-ebook/dp/B01FWLY5K2
Efeito Colateral. Lançamento: Te pego lá fora, Rodrigo Ciríaco – Livraria Cultura. Acesso em: 23 de outubro de 2019. Disponível em: efeito-colateral.blogspot.com/2014/11/lancamento-te-pego-la-fora-rodrigo.html
Veneta. Angola Janga. Acesso em: 23 de outubro de 2019. Disponível em: veneta.com.br/produto/angola-janga
São Paulo In Foco. A mulher que venceu Jorge Amado – O livro de Carolina Maria de Jesus. Acesso em: 23 de outubro de 2019. Disponível em: www.saopauloinfoco.com.br/carolina-maria-de-jesus
A Criatura. Conceição Evaristo: Escritora diz que brasileiro é preconceituoso e que supremacia branca é contraditória. Foto de Isabela Kassow. Acesso em: 23 de outubro de 2019. Disponível em: acriatura.com.br/entrevista-conceicao-evaristo-escritora
Editora Nós. Rodrigo Ciríaco. Acesso em: 23 de outubro de 2019. Disponível em: editoranos.com.br/nossos-autores/rodrigo-ciriaco
Suco de Mangá. Marcelo D’Salete: Autor de Cumbe e Encruzilhada, confirma presença na CCXP 2016. Acesso em: 23 de outubro de 2019. Disponível em: sucodemanga.com.br/marcelo-dsalete-autor-de-cumbe-e-encruzilhada-confirma-presenca-na-ccxp-2016
*Imagens: reprodução sites da referência bibliográfica.