Mulheres ainda lutam por direito à contracepção e ao aborto legal em comunidades pernambucanas.
Joana Suarez, da Agência Pública
Um estudo realizado em comunidades pernambucanas mostra que, nove anos depois de um aborto legal em uma menina de 9 anos ter sido punido com excomunhão, as mulheres continuam impedidas de decidir sobre a contracepção e sobre a interrupção legal da gravidez
Camila* completou 18 anos. Ela e a mãe se desesperam só de pensar em falar do passado. Esconderam-se de todos, tiveram que mudar de cidade para nunca mais tocar no assunto que é lembrança de muita dor. Nove anos atrás, Camila era miudinha, desnutrida – tinha 9 anos de idade, mas parecia ter 5. Foi ao posto de saúde de Alagoinha, cidade de 15 mil habitantes, no Agreste pernambucano, e o médico achou que a menina estava com verme. Foi a uma cidade próxima e suspeitaram da gravidez. Na capital, veio a confirmação: ela estava grávida de gêmeos havia cerca de três meses. Era resultado de estupros do padrasto, apontados também como causa para a antecipação da primeira menstruação da menina para 8 anos de idade.
Naquele ano de 2009, o aborto em situações de violência sexual já era permitido havia décadas. Mas o então arcebispo de Olinda e Recife excomungou a mãe e a equipe médica envolvida no procedimento, um gesto que causou grande repercussão na época, atraindo atenção internacional. O hospital infantil e maternidade Imip não fez o procedimento por pressão da Igreja e de religiosos na porta da unidade. O quarto em que a menina ficou internada por quase duas semanas tinha bonecas e bichos de pelúcia que ela ganhara de presente de padres e enfermeiras.
Os movimentos feministas e ONGs de Recife tiveram que entrar em ação para encaminhar a menina para outra unidade que aceitasse fazer o aborto e garantir o direito daquela criança de não levar adiante uma gestação gemelar que poderia ocasionar a morte dela, pois os médicos a achavam muito fraquinha para suportar o parto. Não havia nem referências de caso semelhante na literatura médica. O aborto em si já foi um sofrimento físico enorme para ela. Camila se enquadrava em dois permissivos legais: do risco de morte e do estupro. Mas era tão inocente que não entendia o que estava acontecendo. “Na ultrassom, dava para ver duas bolas, eram os embriões. E a menina me perguntou: ‘Eu estou doente, é verme, né, tia?’. Pedi que eles fizessem o que fosse melhor para ela, que podia falecer no parto”, lembra a então conselheira tutelar do Recife Jeane Oliveira.
O arcebispo dom José Cardoso Sobrinho, responsável pela excomunhão de todos os envolvidos no procedimento, deu entrevistas em 2009 falando que o crime que o padrasto cometeu era grave, mas não tanto quanto o aborto. A Pública ouviu seis desses “excomungados”, que recontaram a história nunca esquecida na cidade. “Recebemos uma petição online de apoio com 10 mil assinaturas do mundo inteiro, veio imprensa de Londres, do Oriente Médio…”, recorda Paula Viana, da organização não governamental (ONG) Curumim, que atuou nessa “operação de guerra”. Assídua a missas católicas, a assistente social do hospital que fez o procedimento, Francisca Chaves, não se sentiu nem um pouco excomungada: “Nem incomodada, faria tudo de novo. A Igreja estava fixada no aborto e esqueceu da criança, que precisava ser salva”.
Julgamento
Diante de tanta comoção, mãe e filha entraram para o programa especial de proteção do Estado, onde ainda permanecem. Em Alagoinha, o preconceito ainda impede que elas retornem à cidade. A reportagem ligou para o Conselho Tutelar do município para saber sobre a família, e a atendente foi logo dizendo: “Elas estão bem, só quem não ficou bem nessa história foram as duas crianças, que tiraram sem necessidade”, referindo-se ao aborto.
Já a conselheira de lá que atendeu a menina na época, Maria José Gomes, sensibilizou-se pela vida da criança de 9 anos que havia sido violentada e estava em risco. Ela mantém contato com a família até hoje. “Elas não quiseram voltar a morar aqui, é uma cidade muito pequena, as pessoas começaram a julgar a mãe. Na época, a Igreja via três crianças, mas a medicina via uma. Eu estava para defender a lei e o direito dela, eu estou aqui [no conselho] para isso”, afirmou. Camila ainda não se formou no ensino médio e a mãe não quis mais saber de “marido”. Elas conseguiram uma casa do governo e receberam ajuda psicológica. O padrasto foi preso e deve ser solto no próximo ano, após cumprir dez anos de reclusão.
Não há notícias recentes de intromissão do atual comando da Igreja no Recife e Olinda, mas isso é mais uma questão de quem é o arcebispo do momento do que uma mudança na visão da Igreja sobre o tema. Hospitais administrados por religiosos consultados pela reportagem ainda dificultam o acesso ao aborto legal. O Estado e os companheiros responsáveis pela gravidez também continuam a controlar – e a violar – os direitos reprodutivos das mulheres –, como constatou a educadora popular Sílvia Camurça, da ONG SOS Corpo, ao trabalhar em um estudo participativo com 60 mulheres, em fase de finalização. Ela antecipou à Pública alguns achados da pesquisa.
Foram ouvidas mulheres de diferentes faixas etárias e estado civil, das comunidades de Passarinho e Jardim Monte Verde, zonas norte e sul da capital pernambucana. Rodas de conversa abordaram três temas: os desafios de criar filhos, dificuldades de evitar a gravidez e de ter um pré-natal e uma gestação seguros.
Deus quer, o marido quer
O controle das igrejas neopentecostais sobre o corpo da mulher foi um dos fatores apontados como primordial para a violação de direitos. Frases literais da Bíblia são usadas para reforçar a ideia de que “lugar da mulher é em casa, cuidando dos filhos, obedecendo aos maridos”, diz a educadora. No bairro de Passarinho, onde uma rua de cinco quarteirões reúne 11 pequenas igrejas: “Havia uma dificuldade das mulheres perceberem sua autonomia. Tudo depende de Deus, do que Deus quer, afastando as mulheres de si, do seu corpo, do direito de decidir”, destacou Sílvia.
As mulheres relatam também a manipulação de métodos contraceptivos pelos companheiros, que querem que elas engravidem e fiquem em casa, no “seu lugar de mãe”. Há aqueles que escondem a pílula, furam a camisinha ou relutam em usá-la. Essa dificuldade era enfrentada especialmente pelas jovens casadas que queriam estudar e trabalhar, conta Sílvia.
As queixas redobram depois da gravidez e do parto, via de regra sem a participação dos parceiros. “Uma das marcas do parto era a solidão, elas pariram sozinhas. Depois voltam com o bebê e ficam em casa sozinhas no resguardo, sobrecarregadas, para fazer tudo, cuidando dos outros filhos, porque as mulheres da família estão tomando conta dos seus, também se virando”, observa a educadora.
O controle masculino também é exercido no sentido contrário, quando eles não querem filhos e cobram das mulheres o uso de contraceptivos que evitem o uso do preservativo. “Eles monitoram o contraceptivo pelo aplicativo de celular e avisam elas, porque querem sexo seguro de filhos e argumentam que só se usa camisinha com vagabundas”, afirma Sílvia. O uso de injeções contraceptivas – com duração de três meses – é o que mais incomoda as mulheres. Muitas entrevistadas que faziam uso do método, segundo elas por insistência dos maridos, mencionaram efeitos colaterais, como inchaços e dores de cabeça.
O problema estende-se à saúde pública, nas falhas das políticas de planejamento familiar: uma pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz revelou que apenas 45% das brasileiras que tiveram filhos haviam planejado a gravidez. E segue no atendimento às mulheres que não querem engravidar. Segundo Sílvia, uma das entrevistadas contou que o médico cobrou a autorização do marido para que ela colocasse o DIU (dispositivo intrauterino) de cobre, um método contraceptivo de longa duração oferecido pelo SUS, mas de difícil acesso nos postos de saúde. “O Estado controla a mulher não só pela lei que criminaliza o aborto, mas pela prática profissional de ginecologistas pautarem a contracepção pelos seus valores, e não pelas normas técnicas do Ministério da Saúde”, explica Sílvia.
Um dos exemplos dessa interferência moral nos direitos reprodutivos das mulheres encontrados pela educadora é a recusa de agentes de saúde dessas comunidades de distribuir camisinhas para adolescentes, ameaçando contar para os pais delas. “A partir dos 16 elas podem escolher um candidato e não podem decidir se querem camisinha ou não?”, questiona Sílvia. Outras mulheres narraram que a opção pela laqueadura era imposta ou proibida pelo médico, sem respeito às suas decisões.
A gravidez entre adolescentes é rotineira, segundo as mães. As garotas só pensam em namorado por falta de opções e perspectivas para as adolescentes, em comunidades sem equipamentos públicos de lazer, esporte, cultura e educação.
Se decidem abortar, continuam recorrendo aos chás, como faziam suas avós, cultura mantida pelas mulheres das comunidades. Elas plantam nos quintais ou sabem onde apanhar e conhecem as regras para o seu preparo. “Uma delas disse: ‘Eu não queria um filho atrás do outro, eu tive três filhos com intervalos de dois anos. Quando a menstruação atrasava, eu resolvia no chá”, conta Sílvia.
No bairro dos Coelhos
São muitas as famílias extensas chefiadas por mulheres, como a família Silva, no bairro dos Coelhos, comunidade do Recife visitada pela Pública. Dona Maria, 56 anos, criou sozinha os quatro filhos e agora ajuda a criar os netos. Cássia, de 43 anos, tem três filhas; Thaís, de 39, cinco; e Ana, de 32, também têm cinco filhos. Cássio, de 40 anos, só tem uma filha de 20 anos, mas se casou com uma mulher que tem seis filhos.
Ana não toma anticoncepcional para não ir contra os preceitos da igreja pentecostal que frequenta, mas diz que agora ela e o marido entendem que não têm condições de terem mais filhos e por isso usam preservativo. “Diz que o remédio faz mal, dá trombose. Eu também não quero fazer ligação. No posto de saúde, dão preservativo feminino”, conta. A mais nova do casal ainda não tem 1 ano – os outros têm 4, 10, 12 e 13. Já Cássia, que frequenta igreja da mesma linha de Ana, fez a laqueadura na terceira filha e não se deixa convencer pelos pastores, que pregam a obediência ao marido. “Eles falam isso de obedecer, de mulher ficar em casa, mas não é bem assim, não”, afirma ela, que trabalha com faxina. Eduarda, de 22 anos, filha de Cássia, já viu muitas amigas engravidarem sem desejar. “Na escola, no curso, sempre tem uma que engravida no meio do ano. É falta de planejamento mesmo”, fala a jovem.
Dona Maria ainda ajuda Thaís a criar os cinco filhos de diferentes pais. Quatro deles moram com ela porque a casa de Thaís é muito pequena. “Estou tomando injeção de três em três meses, não posso ter outro, já estou quase com 40 anos”, diz ela. A sua menina mais velha, de 18 anos, foi morar com o namorado aos 16 e também toma a injeção, afirma que não quer engravidar, mas já passou um “susto”. A mais nova está com 2 anos, e Thaís agora tenta uma vaga na creche para que ela possa vender tapioca na barraca o dia inteiro. A irmã Ana também não conseguiu neste ano vaga na escola para o filho de 4, que deveria ser garantida pelo município.
Informação para as que querem e as que não querem ser mães
O estudo da SOS Corpo será divulgado em setembro, em meio às ações pelo Dia Latino-americano pela Descriminalização do Aborto (28/09). A ONG vai produzir cartilhas educativas sobre direitos reprodutivos e orientar na identificação das lutas das comunidades por vagas nas creches. Uma segunda demanda é assegurar o cumprimento das obrigações de agentes de saúde e órgãos públicos em relação à distribuição de preservativos e ao atendimento nos casos de aborto legal.
Outra organização feminista do Recife, a ONG Curumim, tem um canal direto por WhatsApp (Vera, sua linha sobre direitos reprodutivos), que recebe muitas perguntas sobre planejamento reprodutivo, aborto e violência sexual. Mulheres estupradas muitas vezes nem sabem que têm direito ao procedimento.
“Desde 2008, ficou proibido divulgar os serviços do abortamento previsto em lei. A população não sabe seu direito, os funcionários não sabem. Não é passada a informação na rede de saúde. As pessoas vão para o procedimento clandestino, sendo que o SUS garante”, afirmou o médico Olímpio de Moraes Filho, diretor do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), que fez o aborto de Camila, em 2009.
Olímpio de Moraes lembra que o Brasil chegou a ter mais de 60 serviços de aborto legal. “Hoje são pouco mais de 30. Depende muito da vontade política e da sociedade civil organizada. Tivemos um retrocesso grande com a bancada evangélica”, diz o médico. Em Pernambuco, apenas três hospitais públicos concentram o atendimento ao aborto legal, entre eles o Cisam, que fez 13 dos 51 atendimentos por gravidez resultante de estupro em 2017, conforme dados enviados para a Pública pela Secretaria Estadual da Mulher. O aborto legal pode ocorrer também se a gravidez oferecer risco de morte à mulher e se o feto for anencéfalo. Mas outros hospitais, principalmente, do interior do estado, se negam a fazer o procedimento.
“A Igreja influencia diretamente algumas políticas públicas. A Santa Casa é responsável por serviços de saúde em Ouricuri [sertão de Pernambuco], e lá tem o maior vazio no atendimento à mulher vítima de violência sexual. Não é oferecida a contracepção de emergência, a pílula do dia seguinte”, diz a enfermeira Paula Viana.
Ligamos no Hospital Regional Fernando Bezerra, do grupo Santa Casa, em Ouricuri, pedindo informações sobre o abortamento em casos de estupro, e a enfermeira que respondeu à ligação mostrou-se desinformada sobre as condições exigidas por lei para o aborto legal. Ela disse que nunca houve esse tipo de atendimento no hospital, cadastrado para o procedimento e referência para 11 municípios da região.
É ali que deveria ser o ponto de entrada das mulheres que sofrem violência sexual, avalia a educadora Vera Guedes, do Fórum de Mulheres. “No início do ano, teve uma adolescente de 16 anos que morreu aqui tentando fazer um aborto ilegal”, lamenta Vera. Procurada por telefone e e-mail, a Santa Casa de Pernambuco não respondeu às perguntas da reportagem.
Paula Viana cita situação semelhante em Caruaru, no Agreste pernambucano, onde o Hospital Jesus Nazareno, por influência religiosa, não realiza o aborto legal. “Se tem o SUS, o hospital deveria seguir a regra do SUS, mas, se tem Igreja gerenciando (ou mantendo) o hospital, ele não vai oferecer às mulheres a contracepção de emergência nem o aborto previsto em lei”, considera Paula.
Em seu site, o Hospital Jesus Nazareno diz ser referência secundária em gestação de alto risco para 90 municípios, mas a assistente social afirmou ao telefone que só prestam o primeiro acolhimento da vítima de violência sexual; em caso de interrupção de gravidez, a paciente é encaminhada para o Recife, a 130 km de lá. Os equívocos no atendimento às vítimas de estupro são recorrentes. No Hospital Regional Inácio de Sá, em Salgueiro, a mais de 500 km do Recife, a reportagem também ligou e a funcionária disse que era preciso registrar o BO antes de ir à unidade. Pela lei, a mulher não precisa fazer boletim de ocorrência policial para ter direito ao aborto em caso de estupro.
A secretária estadual da Mulher de Pernambuco, Sílvia Cordeiro, diz que o Estado não consegue aplicar a lei por imposições de instituições religiosas e pela recusa de muitos médicos em fazer o procedimento alegando objeção de consciência, o que é permitido por lei. “É um desafio ainda a vencer, mesmo nas situações conquistadas, que têm previsão legal. Há uma cultura contrária também entre os profissionais de saúde. O Estado é laico, mas as pessoas não compreendem assim.”
* Nome fictício para proteger a vítima