Em maio de 2002, último ano do tucanato em Brasília, Fernando Henrique Cardoso assinou o programa de direitos humanos do governo e posou para foto com lideranças de movimentos minoritários da sociedade no Palácio do Planalto com pequena bandeira gay nas mãos. No dia seguinte a foto estava na primeira página do Globo e, recortada, pregada no gabinete do deputado Jair Bolsonaro, que escreveu embaixo “Eu já sabia”. Mais do que piada, foi a nota maledicente nas reações adversas havidas na Câmara entre os evangélicos e os conhecidos conservadores de sempre, tipo o pernambucano Severino Cavalcanti, que mais tarde, na era petista, seria eleito presidente na qualidade de estrela máxima do chamado “baixo clero”, os parlamentares de partidos pequenos, sem expressão, que não presidem comissão, não são relatores de projetos, não são líderes de bancadas e discursam nas sessões matinais das sextas-feiras para o plenário vazio apenas para aparecer na Voz do Brasil e na TV Câmara.
Jair Bolsonaro era um desses jamais ouvidos ou cheirados sobre qualquer assunto e aproveitadores de ocasiões como a proporcionada pela foto na imprensa para ter seus minutos de popularidade em cima da camada da sociedade brasileira que se caracteriza pelo conservadorismo e pela estreiteza do pensamento. Pessoas que aprovam assassinato de gay, pensam que estupro acontece porque “a mulher facilita” e que “preto rouba”. São de todas as classes sociais, faixas etárias e confissões religiosas que se reconhecem (ou não) machistas, homofóbicos, misóginos, intolerantes, mal educados e de difícil convívio fora da sua bolha social. Um exemplo é o próprio Jair Bolsonaro, outro é o Luciano da Havan, o Danilo Gentili, o Aécio Neves, o Flavio Rocha da Riachuelo, o dono da banca de jornal da esquina, a caixa do supermercado, o taxista, o motorista do ônibus, o gerente do banco e toda a gama de eleitores que elegeram Bolsonaro acreditando em kit gay, mamadeira de piroca e também aqueles que mesmo sabendo que era tudo invenção difundiram e incentivaram a onda por interesses próprios de retroceder meio século no tempo, com o dístico “Quero meu país de volta”, como prometia o candidato.
Bolsonaro é da mesma laia que amarra ladrão em poste, espanca pivete na orla de Copacabana e Ipanema, defende execução de suspeito, bate em mulher, apoia tortura e pensa não ter havido ditadura militar no Brasil. É gente com quem cruzamos diariamente, que faz parte da nossa família, do trabalho e da academia. Tal e qual o presidente que “brinca” com o turista oriental indagando “Tá tudo pequenininho aí?”, viaja ao outro lado do mundo para ensinar jovens russas a gritar diante da câmera do seu celular “Buceta rosa!” Órgãos genitais, a propósito, são uma fixação, obsessão, inspiram neles um misto de medo e aversão. Por que corpos de jovens despidos são propositadamente confundidos com universitários em orgias? E por que falar em manter o “pênis limpo”? E imagens de golden shower apresentadas como cena de carnaval? Para além da mistificação, tudo leva à misoginia traduzida na “fraquejada” que significa a filha, para ele. Gala rala, “coisa de mulher”, “aquela menina”, como se referiu a Jean Wyllys. Tudo induz, também, ao fascínio pela autoridade, pela farda, pelas flexões de braços com os amigos e puxa-sacos, demostrações de duvidosa virilidade, de superioridade de gênero. Essa galera de “bicha travada no armário”, no dizer de Jean a respeito de Carlos Bolsonaro, é a que está na direção moral do país.
É o político corrupto, o policial miliciano, o magistrado venal, a condenação do que é justo na afirmação e até exaltação do que é errado. Não interessa a propriedade do triplex, o que importa é condenar o réu. Não quero saber se o diálogo é verdadeiro, mas sim quem gravou e porque estão divulgando. Esta inversão “mata o mensageiro”, em vez de captar a mensagem, faz do discurso retórica vazia, esvazia o sentido de moral e de justiça, alimenta a discórdia e espalha o ódio cego, de pai contra filho, de geração a outra geração. Por sorte, o clã Bolsonaro parece próximo do fim. O chefe, apesar dos quatro varões que o cercam, não tem netos, um sinal, talvez, de que neles a fraquejada antecede a concepção. Penso mesmo que aí pode residir a chave de todas as questões que são contornadas, evitadas, ignoradas. Se tivéssemos o hábito de encarar a verdade na nossa história, provavelmente não passaríamos pela experiência atual, mas como não temos, vamos fazendo de conta de que o hoje não passa de exercício de psicologia aplicada ao atraso nacional.