Guilherme Vargues*

 

A recente ação policial, empreendida pelo Governo Estadual do RJ, na comunidade da Coréia, em Senador Camará no Rio de Janeiro, feita com plantel de mais de 500 policiais, trouxe o saldo de 12 mortos. Demarca com nitidez o sentido da política de segurança que norteia o governo Sérgio Cabral, tal como representa a visão de segurança pública da esmagadora maioria dos governos estaduais brasileiros.

 

E o quadro se aquece, em meio à repercussão conservadora do filme Tropa de Elite, digo repercussão, porque aqui falo de resultados políticos do filme, isto é, afora a vontade dos autores, a repercussão conservadora do filme é uma demonstração da correlação de força em que se encontram as respostas da sociedade para as políticas de segurança. O capitão Nascimento se torna um herói, na medida em que ele se torna razoável, inclusive com suas práticas de tortura, para uma classe média “cansada” de ver sua vida ameaçada por conta das seqüelas democráticas de nosso Estado. A criminalização da pobreza aparece como uma chave fundamental na nossa análise, até porque aqui a criminalização é uma política pública.

 

Como sabemos um dos efeitos da modernização neoliberal, no que se refere às condições de vida da população mais carente das grandes cidades, é a miséria, o desplanejamento e a exclusão social. Neste sentido, a propagação da violência na cidade é objetivamente uma política de Estado. Ao reproduzir mecanismos de precarização e vulnerabilidade da população marginal, ao excluir sua presença nos territórios favelizados (o Estado, praticamente, só freqüenta estas regiões como polícia), o Estado torna-se digno de desconfiança, o morador de favelas, por diversas vezes, tem que recorrer a relações de subordinação e clientelismo para ter acesso aos bens públicos essenciais, como saneamento, postos de saúde, ou mesmo um simples remédio que precisa ser comprado com urgência, isto é, quando uma cidade não consegue prover de cidadania a maior parte de sua população ela faz com que as populações mais precarizadas sejam expostas a inúmeras redes de subordinação pessoal, como a contravenção, o crime organizado, o clientelismo, a igreja, entre outros, pois, segundo Maria Alice Carvalho, quando:

 

“são intensos os padrões de exclusão e grande parte da população não se reconhece como particípe de uma trajetória coletiva, a cidade torna-se objeto da apropriação privatista, da depredação e da rapinagem. […] Desenvolve-se, então, a fragmentação da autoridade e o fortalecimento de inúmeras microsociedades com seus chefes e legalidades próprios; propaga-se a corrupção; observam-se a deslegitimação do monopólio do uso da violência pelo Estado e a generalização do conflito” (Carvalho, 1995: 60).

 

A polícia começa a agir como o capitão do mato. Corrupta e caçadora de favelados, sejam eles envolvidos ou não com a irracionalidade das políticas de combate ao tráfico de drogas. Quando acontecem os recorrentes extermínios na favela, comandados ou não pelos “incorruptíveis” e “bem-intencionados” capitães Nascimentos, o saldo é a demonstração para a população da favela de qual é a política que o Estado e a sociedade civil têm para eles. Um por ação e outro por “conivência” ou “conveniência” despertam nestas pessoas um estigma de exclusão, uma estigmatização territorial, que segundo Wacquant (2001), imposto à parcela mais miserável do cenário urbano, demonstra:

 

“Em primeiro lugar, o sentimento de indignidade pessoal que ele carrega assume uma dimensão altamente expressiva da vida cotidiana, que colore as relações interpessoais e afeta negativamente as oportunidades nos círculos sociais, nas escolas e nos mercados de trabalho. Em segundo, observa-se uma forte correlação entre a degradação simbólica e o desmantelamento ecológico dos bairros urbanos: áreas comumente percebidas como de depósitos de pobres, anormais e desajustados tendem a ser evitadas pelos de fora” (33).

 

Dessa forma, a estigmatização territorial origina entre os moradores estratégias sociofóbicas de evasão social interna, que conspiram em diminuir a confiança interpessoal e em minar o senso de coletividade necessários ao engajamento na construção da comunidade e da ação coletiva (Idem). A cidade pressionada por integração não consegue incluir de maneira qualitativa larga parcela de seus membros. Estes se encontram desalojados das políticas públicas que não sejam assistencialistas e emergenciais. O Estado vai aos poucos erguendo a barbárie nas periferias da cidade e alguns elementos são aqui fundamentais: a) corrupção: principal sistema por qual a criminalidade se relaciona com o Estado e o capital, compras de sentença, subornos, trocas de favores e etc. são pontos corriqueiros; b) conservadorismo: a irracionalidade conservadora demonstra desastres enormes no plano da segurança pública, ao esbarrar em tradições e fundamentalismos de todo o tipo o Estado é pouco permeável a crítica; c) legalização das drogas: este ponto é intimamente ligado aos anteriores, pelo primeiro no enriquecimento que pessoas ditas de bem tem com o tráfico de drogas e de armas no Brasil. Pelo segundo, no sentido de que o discurso contra as drogas, tal qual contra o aborto esbarra em valores fundamentalmente conservadores que fogem da razão e da crítica para sobreviver, rompem o movimento da História e não conseguem perceber a dinâmica das coisas, aqui o social vira natural e não se discute. A utilização deve ser de responsabilidade do usuário e a produção liberada, o que acontece hoje é guerra e massacre nas favelas em nome da política de combate ao tráfico; c) cidade do capital: a cidade reproduz socialmente as estruturas de reprodução e ampliação de capital de nosso tempo. Desde a distribuição geográfica ao acesso aos bens públicos percebemos a escassez a qual é imposta larga parcela de nossa sociedade. As periferias têm conquistas frente às lutas democráticas empreendidas nas quais participaram. A presença do governo nessas regiões é assistencialista e neste sentido fragiliza a participação política na cidade. O sujeito ao invés de ir à assembléia de bairro, vai ao político local, no comerciante, ou no traficante procurar saída ou intermediação para ter acesso aos seus interesses.

 

Em conjunto estes elementos operam, segundo Montaño, em um cenário onde a resposta às refrações da “questão social deixa de ser, no projeto neoliberal, responsabilidade privilegiada do Estado, e por meio deste do conjunto da sociedade, e passa a ser agora de auto-responsabilidade dos próprios sujeitos portadores de necessidades, e da ação filantrópica, “solidária-voluntária”, de organizações e indivíduos”.

 

A resposta às necessidades sociais deixa de ser uma responsabilidade de todos e um direito do cidadão, ela passa a ser opção de cada indivíduo. Esse movimento aguça o individualismo produzindo um ritual de “cada um por si” na dinâmica da vida social. A democracia participativa se enfraquece e com ela se ampliam as segmentações sociais, criando desigualdade social, deslegitimação do Estado como espaço permeável e benefactor, desconfiança nas relações inter-pessoais e violência. O papel classista do Estado fica evidente. O capitão do mato Nascimento vai à caça do distúrbio, do incômodo produzido pela ausência de equidade na distribuição de renda, de serviços públicos, de bens de consumo e etc.

 

Na cidade do capital, do capitão e do Bope, não tem escolas para todos, não tem hospital para todos, mas tem dinheiro para jogos, jogos e investimentos. A vida precária gera indignação, e por outro lado, o assistencialismo analfabetiza politicamente a população. Democracia é ter acesso ao campo das decisões, é ser consultado, é votar em projetos e não em heróis.

 

A sociedade precisa responder estas questões. Pois a reprodução da miséria e da violência é política de Estado e consentida por larga parcela da sociedade, como disse antes, seja por ausência, conveniência ou conivência a sociedade legitima a ação do Estado. O individuo tranca-se em casa, acuado e sozinho na adrenalina impessoal que toma parte do cenário urbano, só sente raiva do ladrão de relógios e não consegue pensar o quanto o humilha a sua miséria, o quanto o oprime o seu relógio, o quanto o mortifica e desampara a precariedade, a ausência, o fedor.

 

A cidade está fétida! E quem cagou na praia não foi o pobre, foi a polícia, a sociedade civil e o Estado que aniquilam numa lógica predatória o potencial de uma vida urbana democrática. Para a cidade funcionar, do jeito que ela é hoje, ela precisa da miséria, da violência, do terror e da exclusão, são estes elementos que alimenta o sujo e corrupto movimento do capital, dos interesses dos grupos dominantes em enriquecer e ter poder a qualquer custo.

 

O conservadorismo e o descaramento de classe matam a Historia, paralisam o tempo adormecendo a crítica. Inventam, acreditam e reproduzem valores que retiram da sociedade sentido social para as coisas. É natural sermos pobres, temos que batalhar, consumir propaganda, marketing político, mentiras deslavadas em pleno horário nobre. O lado A não para de agir, enganar, enriquecer e mentir. O outro lado responde de várias maneiras, com luta social, no campo e na cidade, mas também com dispersão, violência e barbárie, barbárie onde o general tem endereço: o governo.

   * Guilherme Vargues é historiador e sociólogo.   

Bibliografia citada:

 CARVALHO, Maria Alice Rezende. “Cidade escassa e violência urbana”. In: Violência e participação política no Rio de Janeiro / Série Estudos, Rio de Janeiro: IUPERJ. 1995.

WACQUAN, Loic.Os condenados da cidade:  :estudos sobre marginalidade avançada. Rio de Janeiro:Revan; FASE, 2005

 

Montaño, Carlos Tercer sector y cuestión social – Crítica al patrón emergente de intervención social. Rio de Janeiro: Cortez, 2006.