A mobilidade urbana está relacionada com o deslocamento das pessoas e ao direito à cidadania e, juntamente com a acessibilidade, desempenha papel fundamental na promoção da igualdade social. Uma cidade mais justa deve estar acessível a todos os cidadãos, independente da raça, gênero ou classe social.
A Política Nacional de Mobilidade Urbana, aprovada em 2012, tem entre seus objetivos contribuir para o acesso universal à cidade, aos serviços básicos e equipamentos sociais; reduzir as desigualdades e promover a inclusão social.
A legislação busca incentivar a integração entre os modos e serviços de transporte urbano, como ônibus, metrô, ciclovias, espaços para pedestres e outras opções sustentáveis. No entanto, a população negra e de baixa renda é a que mais sofre com a falta de oferta de transporte público de qualidade, que interfere, diretamente, no acesso a oportunidades de empregos, serviços de saúde e educação. Essa é uma das conclusões do estudo “Desigualdades Socioespaciais de Acesso a Oportunidades nas Cidades Brasileiras“, realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em parceria com o Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP).
“Existe uma desigualdade muito estrutural em todas as grandes cidades do Brasil, onde as pessoas negras e de mais baixa renda moram em bairros que têm muito menos acesso a oportunidades de emprego, educação e saúde. Essa segregação urbana, a falta de conectividade do sistema de transporte público conjugado com a concentração das oportunidades em determinadas partes do território cria o que a gente pode chamar de ‘armadilha de pobreza espacial’. Isso tem um efeito perverso a longo prazo, que é a diminuição da mobilidade social dessas pessoas”, afirma Rafael Pereira, um dos autores do estudo.
O trabalho calculou os níveis de acessibilidade por transporte público para sete grandes capitais (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Fortaleza, Porto Alegre e Curitiba), e por modos de transporte ativo (a pé e de bicicleta) para as 20 maiores cidades brasileiras, tanto por níveis de renda quanto por cor/raça.
Em todas as 20 cidades, a população branca e de alta renda tem em média mais acesso a oportunidades do que a população negra e pobre, independentemente do meio de transporte considerado.
São Paulo apareceu como a cidade mais desigual do país ao analisar o acesso a educação em até 30 minutos de caminhada. O número de ofertas de trabalho acessíveis aos 10% mais ricos na capital paulista é 9,5 vezes maior do que o número de empregos acessíveis aos 40% mais pobres. Curiosamente, o Rio de Janeiro apresenta uma das menores desigualdades nesse quesito, por conta da aglomeração da população de renda baixa próxima ao centro da cidade. Maceió foi considerada a menos desigual das 20 cidades analisadas.
Em relação ao acesso à educação, em todas as cidades, com exceção de Brasília, se gasta entre cinco e dez minutos de bicicleta para se chegar até uma unidade de ensino médio mais próxima.
São Paulo também amarga outra posição desconfortável: penúltimo lugar em ranking de mobilidade urbana que compara as 31 principais cidades do mundo. No estudo “Mobility Futures”, da consultoria Kantar, São Paulo só ganha de Nairóbi, capital do Quênia.
Acesso a estações
De acordo com o Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP), o acesso a bens e serviços melhora conforme a quantidade de pessoas vivendo próximo a estações de transporte de média e alta capacidade, como BRT, trem, VLT e metrô. O ITDP monitora esse indicador em nove regiões metropolitanas (Belém, Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e Distrito Federal). Dados mais recentes mostram que apenas 9% da população com renda mensal abaixo de um salário-mínimo mora próximo das estações, enquanto 29% das pessoas com renda acima de três salários mínimos estão a até um quilômetro da infraestrutura de transporte mais qualificada das cidades.
Tempo de deslocamento
As condições de acessibilidade e mobilidade urbana longes do ideal causam um enorme impacto na vida dos moradores das periferias, dificultam a mobilidade social e afetam não só a qualidade de vida de quem percorre longas distâncias diariamente como também o desempenho econômico e ambiental das cidades.
Pesquisa da 99, empresa de tecnologia voltada à mobilidade urbana, feita em parceria com a Ipsos em 2019, revelou que os brasileiros gastam, em média, 1h20 para se deslocar (ida e volta) para as atividades principais do dia. Esse gasto chega a 2h07 para que se cumpram todos os deslocamentos diários, ou seja, uma pessoa perde cerca de 32 dias por ano no trânsito.
As classes D e E são as que levam mais tempo nesse deslocamento: cerca de 130 minutos, a cada dia, seguida pela classe C, em média, 129 minutos, e a classe B, 124 minutos. Já, a classe A leva cerca de 94 minutos.
As regiões onde se gasta mais tempo nesses percursos são a Sudeste, com média de 144 minutos, e a Nordeste, com média de 132 minutos.
A professora particular Geane Santos, moradora do Vergel do Lago, parte baixa de Maceió, chega a pegar dois ônibus quando a casa do aluno é longe e demora mais de duas horas no trajeto. “A volta para casa nesse dia é muito complicada, a viagem é longa e o ônibus sempre lotado. Chego muito cansada em casa”.
O custo com o congestionamento no país soma perdas de R$ 267 bilhões por ano, o que corresponde a cerca de 4% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil.
O tempo despendido nos trajetos diários reduz as oportunidades de emprego e de qualificação, além da produtividade. E quem mora mais distante dos centros expandidos também tem, muitas vezes, que se privar do direito de ir e vir por causa precariedade do transporte e da insegurança.
“Já deixei de ir a eventos culturais por não ter transporte para voltar. Algumas linhas têm poucos veículos circulando. Isso faz com que o ônibus fique parado mais tempo nos pontos para entrada de passageiros, atrasando ainda mais as viagens, criando um círculo vicioso onde o passageiro aglomera para não chegar tarde nos compromissos e fica mais tempo no veículo”, diz a fisioterapeuta e jornalista Jacqueline Maria da Silva, moradora da Cidade Ademar, zona sul de São Paulo. Quando se sente insegura, ela recorre aos aplicativos de transporte particular para fazer trajetos curtos.
A possibilidade do acesso por aplicativos de transporte tem dado uma opção extra de deslocamento e integração aos moradores da periferia. Um levantamento realizado pela FIPE (Fundação Instituto Pesquisas Econômicas) aponta que cada passageiro da 99 tem acesso a 2 mil postos de trabalho a mais. O mapa a seguir mostra que quanto mais longe da rede estrutural de transporte o passageiro vive, maior será a acessibilidade acarretada pelos serviços da 99.
Custo da tarifa
O crescimento desordenado das cidades, com a ocupação das áreas mais periféricas pelos mais pobres, também revela outra desigualdade entre ricos e pobres: o custo do transporte, que é maior para quem percorre maiores distâncias.
A tarifa do transporte público no orçamento familiar mensal para quem mora em áreas periféricas, como a Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, compromete mais de um terço da renda com as passagens de ônibus, enquanto em áreas mais privilegiadas, há pessoas que se pegarem dois ônibus por dia vão gastar menos de 5% da renda mensal. O levantamento faz parte do Mapa da Desigualdade 2020, feito pela Casa Fluminense, com base em dados das prefeituras de 22 cidades que compõem a região metropolitana do Rio de Janeiro e as empresas de ônibus.
Transformações entre centro-periferia
Apesar de haver ainda concentração de atividades nas áreas urbanas centrais e a forte dependência do centro, iniciativas estão transformando as periferias desde as últimas décadas. Esse fenômeno chamado de “centralidade secundária” consiste em regiões fora do centro, mas que ainda sim oferecem atividades e serviços, trazendo oportunidades de trabalho sem a dependência do transporte público.
“A partir dos anos 2000, há uma redefinição gradual do padrão centro-periferia. As periferias passam a ser vistas pelo mercado imobiliário como alvo de investimento. Houve então um processo de diversificação socioespacial das periferias com a construção de conjuntos habitacionais para pessoas de renda média a baixa, que não conseguem comprar nas regiões centrais, e elas começam a se deslocar para as periferias. Também começa a ter investimento imobiliário destinado às classes de alta renda”, aponta a urbanista e pesquisadora Eugênia Dória Viana Cerqueira. Como consequência, esses espaços passam a atrair outros investimentos, como serviços, comércio e equipamentos urbanos.
Eugênia, no entanto, ressalta que a dispersão de atividades em direção aos eixos periféricos de urbanização pode levar a população de baixa renda para locais ainda mais distantes. “Em Belo Horizonte, pôde-se observar que houve uma mobilidade muito grande dessa população para outros locais”, afirma ela.
Mudanças para reduzir as desigualdades
Fazer uma distribuição melhor de acesso à moradia, emprego e equipamentos de esporte e lazer, entender como as pessoas se deslocam e quais são as diferenças e peculiaridades de gênero, raça e classe social são essenciais para uma cidade mais justa e sustentável.
Segundo especialistas, o planejamento do transporte deve envolver vários dados além dos usados atualmente de origem e destino (O.D.) das viagens feitas pela população. “São dados que tratam inevitavelmente da viagem casa-trabalho e ignoram, por exemplo, o padrão de deslocamento das mulheres, da mulher negra, chefe de família, que mora na periferia e precisa fazer diferentes deslocamentos”, ressalta Clarisse Cunha Linke, diretora executiva do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP). Ignoram também a questão racial, que é preponderante em relação à questão de gênero. “O deslocamento de uma mulher branca é muito mais semelhante ao de um homem branco do que de uma mulher preta. No Brasil, não tem mais como falar de mobilidade ou desenvolvimento urbano sem tratar da questão racial”, diz Clarisse.
A diretora executiva do ITDP ainda chama atenção para a baixa representatividade de mulheres e negros no planejamento, na gestão e operação do sistema de transporte, o que dificulta a fazer mudanças e, ao mesmo tempo, reflete as desigualdades.
Sistema de transporte integrado e eficiente
Para assegurar que todos tenham acesso mais igualitário à cidade e às oportunidades e serviços, especialistas defendem o transporte intermodal como uma das saídas. O “Relatório Global sobre Transporte Público 2019”, realizado pelo app Moovit, aponta que 73% dos deslocamentos em Salvador envolvem duas ou mais baldeações, enquanto em Fortaleza, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e Brasília mais de 60% das pessoas precisam trocar de veículo durante uma viagem. A integração entre mais de um tipo de veículo no deslocamento pode minimizar os problemas de mobilidade urbana. E nenhuma solução deve ser desconsiderada, seja coletiva ou individual, pública ou privada, como os aplicativos de transporte.
“O aplicativo pode ajudar a chegar numa estação de transporte público, e em casos que a pessoa, por exemplo, não ande de bicicleta, ou tenha mobilidade reduzida. No entanto, o poder público não pode se eximir da responsabilidade de investir em sistemas eficientes mais justos economicamente, com ônibus locais, de menor capacidade, que possam alimentar o sistema, e investir em infraestrutura cicloviária que de fato possibilite as pessoas se conectarem ao transporte público de bicicleta”, ressalta Clarisse.
No entanto, construir um sistema eficiente e integrado é um grande desafio, que requer a articulação entre vários municípios, estado e governo federal, além da iniciativa privada.
Também é importante estabelecer a integração tarifária, que permite ao passageiro pagar uma passagem diferenciada por várias viagens em determinado espaço de tempo.
Outro ponto abordado pelos especialistas é que para reduzir as desigualdades, as políticas públicas no Brasil precisam dar mais atenção à acessibilidade urbana, juntamente com a questão da mobilidade.
“Talvez tão importante quanto o investimento em transporte público é pensar o desenvolvimento urbano de uma maneira integrada, com planejamento dos locais onde vão construir escolas, creches, postos de saúde e outros equipamentos”, diz Rafael.
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