Na nossa sociedade existe uma suposição comum e absurda: é das classes mais baixas da população que sai a maioria absoluta dos marginais – mais especificamente das favelas.
Os moradores de favelas têm o acesso a educação e informação de qualidade dificultados – e até negados – pelo Estado. O resto da sociedade, muitas vezes, se julga superior a esses indivíduos. Assim, impedem a criação de condições favoráveis à compreensão das relações sociais, o que permitiria o livre pensamento e levaria estes excluídos a se posicionarem como sujeitos ativos e críticos da realidade social.
Entretanto, nas favelas, todo e qualquer direito é arrancado do cidadão na base do fuzil no peito, do tapa na cara. No caso de nós mulheres, moradoras de favelas, esses direitos são arrancados na base do tapa na cara, tapa na bunda, mãos recheadas de maldades em nossos seios e por debaixo de nossas roupas. Será que nem direito aos nossos próprios corpos temos mais? Já não basta arrombarem nossas casas com chutes ou as invadirem com suas chaves-mestras? Vão continuar a violar nossos corpos?
Segundo o Instituto Patrícia Galvão, o Brasil tem cerca de 6 milhões de mulheres que vivem em favelas, em sua maioria, nos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro. Essas mulheres são majoritariamente negras, casadas e mães. Entre elas, temos trabalhadoras, chefes de família e estudantes universitárias que movimentam R$24 bilhões. Mulher não significa inferioridade ou fraqueza. Na favela, muito menos. No entanto, é notório que são essas as mulheres mais agredidas pelas mãos de policiais.
Abusos e humilhações são frequentes
O braço armado do Estado tem se empenhado na missão de extermínio de pobres, criminalizando moradores de favela e perseguindo as mulheres destas áreas. Em 2009, uma moradora do Morro da Mangueira, de 21 anos, acusou um policial de estupro. Ele teria violentado a jovem em seu quarto, segurando-a contra o berço de seu próprio filho. A família da vítima teve dificuldades para efetuar o registro na delegacia e com a falta de colaboração do comando do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), que se negava a informar quais policiais teriam participado de operação naquele local.
Normal não é e nunca será, mas se tornou parte do cotidiano das comunidades ver a abordagem ilegal de mulheres, geralmente levadas para algum canto onde são abusadas e tem seus pertences danificados ou mesmo roubados. Quando seus objetos caem no chão, são obrigadas a se ajoelhar para pegar sob a vigia de policiais armados e sarcásticos, que parecem sentir prazer nesse gesto de humilhação e submissão.
Entre um tapa e outro, um chute no guarda-roupas e uma facada no colchão da cama, eles se prendem à alegação de que todo morador de favela é bandido, que toda moradora possui reputação questionável e é mulher de bandido. Se posicionam em portas de farmácias e padarias e, sempre que uma jovem entra nesses estabelecimentos, são enormes as chances de a mesma ouvir ofensas e expressões de baixo calão. Como se não bastasse ter que ouvir estes insultos, as vítimas são coagidas pelo medo, pelo silêncio e pelas ameaças dirigidas a quem ousa denunciar.
E os casos podem ir mais além. Ficou conhecido do público o caso de dois anos atrás, em que quatro policiais foram acusados de participar do estupro coletivo de três jovens na favela do Jacarezinho. O quase inacreditável desses trágicos acontecimentos é que uma grande parcela da população tenta justificar este terrorismo estatal com um discurso ofensivo, machista e fora de suas realidades, culpando as mulheres das favelas por todos os seus males.
A sociedade também tem suas mãos sujas de sangue quando insiste em transformar as vítimas em culpadas, permitindo assim que isso continue acontecendo. As mulheres são vítimas explícitas de abusos policiais nas favelas e, muitas vezes, se vêem abandonadas, enfrentando sozinhas o seu martírio diário: apenas ser quem são.