A opção consciente e ignorante por um passado que não passa

Repressão na ditadura a manifestação popular - Reprodução da internet

Importa ver além das coisas, sobretudo por serem obviamente ululantes nos dias atuais. Enxergar intenções onde há sinais somente, vislumbrar propósitos mal disfarçados em palavras esvaziadas de significado, adivinhar e prever o que está por vir. Assim, e apenas desta maneira, seremos capazes de perceber “the whole picture”, como dizem os americanos, “a foto inteira” com seus atores principais, coadjuvantes e figurantes, extras e dublês. Está tudo exposto na cara da gente, é só recuar uns passos e observar como o visitante do museu diante do quadro na parede. Está tudo aí em tintas fortes, agressivas aos olhos do país anestesiado, inerte e inerme, ausente de si próprio.

A realidade é dura de encarar, dolorosa, mas temos de fazê-lo apesar das dores na consciência de cada um: para chegar aqui caminhamos alegres e felizes com conquistas que nunca foram conquistadas, mas outorgadas pelos governos petistas. Bolsas, Prounis, Fies, tudo feito para angariar apoios que não se manifestaram nas ruas quando foi preciso defender a legalidade constitucional. Os pobres não se mobilizaram, a favela não desceu, até porque aqueles governos dito progressistas não mexeram uma palha para conter o extermínio de negros e pobres e favelados e periféricos. Dilma subiu o morro no passeio inaugural do teleférico do Alemão, e sentiu medo porque o bondinho balançava. Não voltou.

Lula abraçou e beijou pobres, velhos desdentados e crianças mal vestidas por onde passou em oito anos de andanças, mas foi incapaz de acompanhar sequer um daqueles casos, uma só pessoa que posou para a foto épica com ele, inteirar-se do que aconteceu com ela. Não fez nenhuma mudança sequer na educação, nem mesmo tornar obrigatório o ensino às crianças e adolescentes do que representou a ditadura militar de 1964/85. Argumentava-se, então, “a complexidade do processo, isso não muda assim não”. Os militares voltaram ao poder e em menos de um ano implantaram o ensino cívico/militar nas escolas públicas, com ordem unida, cabelo cortado e saias abaixo dos joelhos, sem piercings, tatuagens, pulseiras. E a garotada gosta, os pais aplaudem, os milicos enchem o peito. Vai todo mundo desfilar no Sete de Setembro.

Assim caminhamos até chegar ao ponto de acreditar na boa-fé dos militares. Ninguém se lembra das trevas da ditadura, dos mortos e desaparecidos, das torturas; os fardados são uns santos na luta contra a corrupção da esquerda, não roubaram, não roubam, não roubarão. Pergunte à sua tia ou ao seu avô e eles dirão que naqueles anos chamados de chumbo portavam joias nos pulsos e no pescoço nas ruas, havia total segurança e dormia-se da janela aberta nas noites de calor. Se algum jovem foi torturado e morto boa coisa não fez, você é a prova disso, seu pai e sua mãe nunca foram chamados a depor no Dops nem pendurados no pau-de-arara.

Quando digo que importa ver além das coisas, quero chamar a atenção para o enredo em desenvolvimento ao fundo da cena, enquanto na frente do palco protagonistas repetem a ladainha de que não haverá atentado à legalidade e à democracia, que o presidente e sua família são vítimas de campanha difamatória, que pregar o fechamento das instituições, o assassinato de juízes, a prisão em massa de opositores e armas para todos é liberdade de expressão. Até que um belo dia o país acordará com a prisão de dois ou três juízes supremos e Bolsonaro na televisão dizendo que está defendendo a democracia.