Parece que esse Ano Novo foi reverso. É incrível como entrar em 2019 pode parecer tão antifuturista. O meme desejando a todos um feliz 1964 foi provavelmente a piada mais engraçada que não fez ninguém rir desde “A vida é bela”, de Benigni. O desfile militar de posse teve o brilho ofuscante das joias da rainha inglesa e daquele piano dourado; quão antiquado e desconectado da decência humana básica.
A primeira demonstração de violência que presenciei este ano aconteceu no dia seguinte à posse e cerca de uma hora depois que me arrisquei a sair de casa pela primeira vez depois da virada. Era 2 de janeiro, por volta das 19h, e saí com uma amiga para tomar vinho no centro histórico de Salvador. Nós não estávamos sozinhas. Crianças jogavam futebol, meia dúzia de malabaristas hispânicos fumavam, um casal se beijava; alguns gatos e cachorros de rua perambulavam sem rumo e minha amiga e eu reclamávamos do mundo.
Nossa negatividade era justificada… As únicas coisas positivas que tínhamos a dizer eram sobre o fato de que as paredes ao redor da escadaria eram regularmente pintadas de branco, mas não duravam um dia sem recuperar seu grafite; como o pelo no corpo de uma mulher obcecada por depilação. Um turista passou e tirou uma foto da pichação: “porcos governam”, e eu disse “quem dera” (sinceramente), o que fez minha amiga soltar uma risada maléfica.
Foi assim até que o cachorro de um cara que passou por ali começou a latir para o cachorro de um dos malabaristas. O malabarista chutou seu próprio cachorro para parar a luta, o que provocou uma briga entre os dois donos. Instantaneamente, os cães e os homens latiam violentamente uns para os outros. O indivíduo que estava de passagem ficou chateado por testemunhar a crueldade contra o outro animal (e eu também). Além disso, ele se preocupou com o fato daquela cena poder afetar seu próprio cachorro. O malabarista não tinha muito a dizer além de clichês machistas como: “O cachorro é meu. Você não me conhece. Qual é o seu problema? Qual é o seu problema?”… Com um sotaque espanhol. Ele era do Chile. Então, eventualmente, o outro cara disse: “Você está na minha pátria, viadinho!”
Minha amiga e eu ficamos em estado de choque e nos preparamos para entrar numa briga física. Só que não foi fácil defender alguém como esse malabarista, que expressou comentários machistas.
O cara foi embora com seu cachorro, e eu me virei para o malabarista dizendo: “Não chute seu cachorro, cara! E toma cuidado com esses ‘bolsominions’; eles encontrarão qualquer desculpa para ferrar com você. Não dê brecha e não ofereça a arma para o babaca que quer te matar”. A resposta dele foi: “Eu não tô nem aí pra política. Acredito em amor e energias positivas. Você não me conhece, não sabe como eu trato meu cachorro. Você que é a xenofóbica”.
Fomos embora assim que vimos o cara de antes voltar acompanhado de mais pessoas, observando-nos à distância enquanto seguravam seus celulares, e um carro de polícia passando. Neste artigo, vou pular a questão óbvia da homofobia e do machismo para focar no capitalismo e na supremacia branca, mas deve ficar claro que todos esses problemas estão conectados e são igualmente relevantes.
As atitudes xenofóbicas dos “bolsominions”, contra hispânicos em particular, vêm daquela rejeição das tendências “comunistas” da Venezuela e de todas as outras iniciativas de economia mista, erroneamente consideradas “comunistas”. Há também uma necessidade supremacista branca de dissociar brasileiros de hispânicos. Isso se torna visível quando tentamos de qualquer forma nos comunicar com europeus e norte americanos em inglês, mas reclamamos quando hispânicos falam português com sotaque espanhol. O “anticomunismo” e a supremacia branca andam de mãos dadas, porque a crença na meritocracia “garantida” pelo sistema capitalista justifica visões racistas e a idolatria de valores Ocidentais.
O que tenho ouvido de muita gente é que as comunidades indígenas são uma ameaça à soberania brasileira, porque há muitos acadêmicos e instituições humanitárias estrangeiras envolvidos nelas. Meu próprio pai conta histórias de como ele já passou por “tribos” enquanto andava de moto pelo país, onde os nativos não falavam português, apenas sua própria língua e inglês. Pior ainda, cobravam dinheiro, ou uma caixa de bombom, para o deixarem entrar em suas terras. Como se os povos indígenas fossem os que inventaram pedágios. E como se essas comunidades tivessem uma mera chance de preservar suas línguas nativas sem o apoio de universidades estrangeiras.
O patriotismo que critica indígenas por seus relacionamentos com ONGs estrangeiras, e defende a compra de bilhões dólares em equipamentos militares da Europa e dos Estados Unidos, é particularmente inepto. Durante o primeiro turno das eleições, em outubro do ano passado, um gigantesco navio militar estava fundeado na baía de Guanabara. Foi comprado do Reino Unido pelo então presidente Temer por quase meio bilhão de reais e é o principal navio da nossa marinha. Qual é o seu propósito? “Projeção de poder sobre a terra”, logo à disposição de nosso novo presidente eleito.
Segundo o Centro de Direitos Humanos da Islândia, são “durante os conflitos armados [que] os direitos humanos são mais violados”. Enquanto investimos em nossa habilidade de fazer guerra, nossa nova ministra de Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, já declarou guerra contra os povos indígenas. Ela ajudou a fundar a ONG Atini, a organização responsável por fazer um documentário desonesto sobre infanticídio em comunidades indígenas, chamado “Hakani”. Damares não é mais da organização, mas era na época da realização do filme. Atini foi processada e, embora a ministra não tenha sido envolvida no processo legal, é importante reconhecer sua associação ao ato criminoso. Este processo de 2016 buscou justiça para as comunidades indígenas que sofreram discriminação por causa das mentiras espalhadas pelo filme; mentiras que tinham o propósito de não apenas incitar o ódio, mas também de influenciar as políticas do governo, e promover o trabalho missionário cristão.
Neste cenário político, eu realmente desejei que as coisas fossem facilmente divididas entre aqueles contra e aqueles a favor do que o atual presidente representa. Mas é claro que não será o caso. Teremos que fazer escolhas difíceis, e mais importante, precisaremos escolher nossas parcerias politicas com muito cuidado. Segurança não significa apenas usar Signal, ou segurar a mão de todo mundo, literal e figurativamente. A ideia de força em números complica quando você percebe que não quer compartilhar a responsabilidade de sua própria segurança com qualquer um que afirme “Ele Não”.
Sou separatista: vou apontar a hipocrisia daqueles que pregam o anticapitalismo e “o poder da energia positiva” e, ao mesmo tempo, chutam seus cães e partem pra cima de outros caras cheios de músculos flexionados. Porque mesmo quando são vítimas de discursos de ódio, recusam-se a falar da conjuntura política.
Movimentos podem ter diversidade? Sim, claro. Os movimentos de resistência não precisam ser homogêneos, mas devem garantir o bem-estar de seus e suas participantes. Por exemplo, uma mulher não deveria ter que colocar de lado seu feminismo para poder participar de um grupo com caras machistas da AFA. Se o grupo AFA quer diversidade, então precisam saber o que isso significa além do mero simbolismo, no papel.
O separatismo é classista? Não necessariamente. É possível que participantes exijam respeito sem tornar um grupo financeiramente ou “intelectualmente” (como em “intelectualismo”) exclusivo. É classista se uma organização ou movimento existe em um ambiente hostil a pessoas que têm menos recursos (de acessibilidade física ao jargão acadêmico). Não é classista simplesmente esperar não ser assediada por ninguém, nem mesmo por alguém mais marginalizado do que você.
Vivemos em um mundo onde uma celebridade de reality shows pode anunciar um estado de emergência federal por causa de uma parede inútil. Uma ministra de direitos humanos pode criar propaganda falsa sobre povos indígenas para influenciar políticas públicas. Pintar a cara de preto e fingir ser negro ainda é considerado divertido, e os corpos (des)aparecidos no Mediterrâneo são ignorados. Tolerar atos menores de violência dentro de grandes movimentos de resistência não é a solução para a solidão que sentimos em face dessas tragédias. A longo prazo, todas as pequenas coisas que foram negligenciadas voltarão maiores e mais fortes. Não precisamos de muitas pessoas para fazer algo que importa. Um grupo pequeno e confiável pode fazer muita diferença. Onde quer que você esteja e quaisquer que sejam os recursos disponíveis a você, há um trabalho satisfatório a ser feito que não precisa ser institucional ou solitário. A partir daí, podemos começar a colaborar com os outros grupos e repensar a escala de nossas ações.