“A raiva e a fome é coisas dos home”
(Aldir Blanc e João Bosco)
Depois de um longo tempo afastado da militância presencial e obedecendo as restrições sanitárias, sábado (17/04), fui convidado para a inauguração do Espaço Comunal Elizia Pirozi, na Rocinha. Lá, encontrei companheiros e companheiras de luta. Após celebrar a inauguração do espaço e com o intervalo do evento, voltei a sentir os sentidos do valor e do calor humano e de conversar presencialmente com amigas e amigos do movimento de favelas.
Conversando e obedecendo as regras sanitárias, mesmo que presencial, os componentes fé, esperança e superação estavam nos becos e bocas. Novos signos nos gestos indicavam: afeto, sem afago; rir, só com olhos; abraços contidos, álcool gel nas mãos e máscara, predominantemente, cobrindo o rosto de cada um. Lanche comunitário, café, suco, cachorro-quente, bolo.
O desejo afoito de colocar o papo em dia não cabia no parco tempo disponível. Muitas vezes mudávamos de tema, mesmo inconcluso, ou transitávamos de roda de conversa de maneira distraída, como se fosse a dança das cadeiras e, subitamente, engatávamos em outra roda buscando nos situarmos na prosa.
Contudo, para a gente periférica e favelada, de todos os assuntos, a fome talvez seja o tema mais difícil de debater e “digerir”. Porque o Covid tem como driblar, mas a fome é implacável. Não cabe debate, e sim ação! Os relatos de quem está há dias sem comer, agonizando, causam tremores, neles e em nós. São pessoas que têm nome e sobrenome. Que querem trabalhar, mas não têm trabalho; que querem comer, mas não têm comida. Que querem teto, mas não têm como pagar o aluguel. Que querem estudar, mas não têm internet. Que querem amar, mas com fome, não têm como. Que querem sonhar, mas de barriga vazia, só pesadelo.
Há relatos deprimentes de mães solteiras e desempregadas que pensam em doar seus filhos, mais que especiais, para seus vizinhos, porque não têm condições de alimentá-los. Episódios que a gente tinha esquecido, pois acreditávamos que tinham sido riscados do mapa da fome. Mas não. A descontrolada pandemia escancarou a desigualdade social e econômica e o famigerado espectro da fome, que parecia erradicado, voltou com força na periferia e nas favelas.
Em um jogo de cena, o poder público promove tímidos e cínicos programas de auxílio econômico para amenizar a fome, que não incide nas mesas das famílias de quem vive nas periferias e favelas. Já as ações solidárias articuladas por moradores e grupos sociais de favelados, que dividem o pouco que têm de mantimentos de suas espaçosas despensas, são os mais exitosos no combate à fome, no entanto com alcance limitado. Comer todos os dias tem sido um grande desafio para muitos brasileiros. Será que a fome não dá para interromper? “A fome tem que ter raiva pra interromper”.
Matéria escrita por Roberto Castro de Lucena – historiador e morador da favela da Rocinha.
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