Segundo dados do INFOPEN (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias) de 2016, nossa população carcerária é composta por 726.712 presos, num sistema prisional que contempla um total de 368.049 vagas (pouco mais da metade, o que significa que nosso sistema comporta, em tese, quase o dobro de presos que deveria comportar, verificando-se um déficit de 358.633 vagas e uma taxa de ocupação de 197,4%).
Nossa população prisional vem aumentando vertiginosamente, e isso não somente nos últimos anos. Entre 1990 e 2016, nossa população prisional deu um salto de estimados 90.000 presos – não havia uma contabilidade sistemática dos dados do sistema prisional à época – para este número que vemos agora de mais de 700.000.
Vale notar, ainda, que 1/3 da população prisional brasileira está concentrada no estado de São Paulo (mais precisamente, 33,1% ou 240.061 presos – o segundo colocado é Minas Gerais, com apenas 68.354).
Não é preciso dizer que o “preso-padrão” que é integrado ao nosso sistema penal (e desintegrado de nosso sistema social) é, em regra, negro, pobre e sem escolaridade. 64% da população prisional é negra. Os maioria absoluta dos tipos penais tentados ou consumado são crimes que envolvem a “obtenção de vantagem ilícita” (dinheiro) de forma direta ou indireta, contemplando um total de 69%: tráfico (26%), roubo (26%), furto (12%), receptação (3%) e quadrilha ou bando (2%). Um bom indicativo de que o crime é, em geral, visto como uma empresa e/ou uma saída da condição miserável de penúria e como consequência quase natural – mais apropriadamente, lógica – de um ambiente extremamente degradado socialmente, e não uma atividade escolhida simplesmente com o fim de se tornar um “mau sujeito” ou puro resultado de razões etiológicas individuais. Por fim, 61% não completou nem o ensino fundamental.
Mas – e aqui as coisas começam a ficar ainda mais interessantes -, são impressionantes os dados que o INFOPEN nos traz: 40% da nossa população prisional são presos sem condenação. Veja, não se trata tão somente de condenação definitiva, mas da total ausência de condenação, em primeira, segunda ou terceira instância.
292.450 pessoas estão presas provisoriamente. No Sergipe, por exemplo, todos os presos provisórios, repito, todos os presos provisórios, em 2016, estavam presos há mais de 90 dias ainda sem condenação. No Rio de Janeiro esse número baixa para surpreendentes 6%, e em São Paulo marca a proporção de 47%.
Considerando toda essa conjuntura, não seria irrazoável concluir que: o princípio da presunção de não-culpa vale, mas vale conforme ventam as brisas do decisionismo da exceção constitucionalizada. E vale, mas de modo geral vale quando convém ou quando a suspensão da sua efetividade não se faz valer; vale para os que convém ou que têm o poder da barganha.
A discussão pela constitucionalidade ou inconstitucionalidade da decisão do STF que, na prática, derrogou o princípio de presunção da não-culpa é, no fundo, uma discussão que disputa as migalhas espalhadas pelas trincheiras do confronto idealista, porque, na realidade material, sua constitucionalidade carece de força real. No universo da materialidade, o princípio de presunção da não-culpa não vale e nunca valeu, se não como um dispositivo de exceção pronto a ser (des)aplicado – quando necessário ou conveniente sob as malhas do poder – na sua forma suspensiva de aplicar-se desaplicando-se.
Isso não significa, contudo, que devamos ceder a essa desgraçada incontornabilidade do real. Abrir espaço deliberado para o decisionismo em detrimento da força normativa da Constituição é ceder cada vez mais espaço para a perigosa normalização da exceção. Primeiro é um caso isolado, depois o direito de um grupo, e então os direitos de toda uma população. Nessa toada, quando nos dermos conta, não haverá mais o que reivindicar ou resistir contra a biopolítica do biopoder, do necropoder e da exceção. E, para o nosso pavor, sinais nos acenam de modo ameaçador do horizonte, nos avisando dessa insuportável possibilidade.
A disputa pela narrativa das ideias é o campo estratégico de disputa pela narrativa da realidade. Ainda que o princípio de presunção da não-culpa não valha sempre que deveria valer, é melhor que ele valha às vezes do que nunca.
Fato é que, independente do que será decidido, o resultado irá de qualquer jeito confirmar a lógica da exceção sob a qual o poder opera. Mas ele também revelará se nós estamos gradativamente escolhendo chafurdar no imediatismo do presente ou se somos capazes de deitar os olhos sobre o presente de um futuro em suspensão que de pouco em pouco, para o nosso horror e nosso alívio, deixa escapar uma fagulha do por vir.
Artigo de Diogo Carvalho, mestre em Ciência Jurídica e militante do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia (CEII).