Essa mudança social, econômica, cultural e política pelo país foi impulsionada, especialmente, entre as elites políticas e intelectuais, na busca de consolidar o poder social e conservar as posições aristocráticas frente aos pressupostos políticos da república emergente, à procura deliberada e seletiva de ideias, princípios e argumentos, tomados no período como científicos para organizar e classificar racialmente os povos brasileiros. Práticas que tinham outros sentidos e lógicas até aquele momento.
Naquele momento, como apontam diversos pesquisadores como Lilia Schwarcz, Adriana Campos, Lavínia Coutinho Cardoso, Patrícia Maria da Silva Merlo, Joseli Maria Nunes Mendonça, Cleber da Silva Maciel, Flávio Gomes, Leonor Franco de Araújo e muitos outros, o conceito de raça, de forma ontológica e natural, é operado como identificador coletivo e configurando em estratégia de pertencimento à nação.
A questão que se colocava é que sendo nação brasileira, constituída de vários povos, apresentava-se o problema da ausência de competências e habilidades de determinados povos, para alcançarem o grau de civilidade sonhado pelas elites brasileiras e materializado no centro da cultura ocidental: Estados Unidos e Europa, mais especificamente França e Inglaterra.
Essa querela intelectual, que derivou ações e discursos que se difundiram por toda vida social cotidiana, justificando prática de racismo e os processos de racialização de povos indígenas e negros. Buscavam obsessivamente construir uma tipificação social brasileira,
hierarquizando-a e definindo a contribuição de cada uma no processo chamado formação nacional.
Esse conjunto de discursos e práticas resultou e fortaleceu processos de exclusão e construção de contextos de constrangimentos e humilhações dos indivíduos de determinadas categorias sociais que buscassem construir outra trajetória social distintas daquela ecoada pelas autoridades científicas e políticas. Uma leitura rápida nas obras de
Lima Barreto pode-se compreender a tragédia individual e coletiva desse imaginário social dominante.
Assim, as populações negras articuladas em trabalhos precários e inferiores, excluídas das escolas e envolvidas em práticas sociais e culturais consideram inadequadas, aberrantes, sediciosas e eram alvo recorrente do poder policial e penal. Por vezes, também não encontrando saídas para sobreviver envolviam em atividades ilegais que acabavam alimentando o sistema carcerário.
A própria teoria criminal, que ainda alimenta o imaginário policial e jurídico brasileiro, com teorias criminais lombrosianas, buscava identificar traços físico-anatômicos nas tendências comportamentais.
Todas essas adversidades impostas às populações negras e indígenas no pós-abolição envolveram resistências, protestos, negociações, construção de brechas e frestas de autonomia e liberdade, que resultaram em construções de grandes instituições nacionais, tais como: associativismo/mutualismo étnico-racial, imprensa negra, teatro experimental do negro, afirmação das religiões de afro-brasileiras, invenção da Umbanda, as lutas pelos direitos de permanência nas cidades e campo (quilombos, favelas, ocupações, periferias), Futebol, Escolas de Samba, Carnaval, a literatura, a carreira acadêmica, Ritmos Musicais, trabalho coletivo e dividido dos trabalhadores dos portuários, formalização do trabalho doméstico, lutas contra a violência na periferia, criação dos movimentos negros e das entidades civis negras e outros.
Essas convergências de histórias individuais e coletivas produziram a autoconsciência da luta pela segunda abolição que significava o combate contra o racismo e as desigualdades raciais. Essa segunda abolição também significa uma nova identidade histórica que se traduz na transformação no modo como representamos o que chamamos
Brasil. Não se trata apenas de conquistar melhorias sociais e reconhecimento social, trata-se da reconstrução simbólica e institucional do Estado Brasileiro e da sociedade em sua vida cotidiana.
Dessa maneira, numa conjuntura política e social local, regional e mundial, que cada vez mais reedita o desejo humano de classificação e purificação das raças, via uso das ciências, os cidadãos negros, individual e coletivamente, recusam-se aos lugares sociais, políticos, econômicos e culturais que outrora foram construídos como seu destino social,
colocando em cheque o imaginário da casa grande.
Em 13 de maio de 1888, confirmou a liberdade formal não só dos negros, mas de todos os trabalhadores brasileiros de qualquer tipo de trabalho cativo.
Hoje, continuamos lutando pela segunda abolição que é fim do trabalho escravo, do racismo, da discriminação, sexismos, xenofobia e etnocentrismo. Esse fim só pode ser obra da sociedade, da luta antirracista que encontra nas nossas mãos, pela responsabilidade, em primeiro lugar, daqueles que se identificam como brancos e continuam não compreender o que implica a branquitude nas relações de poder e configuram nossa vida cotidiana.
Essa segunda abolição só poderá ser, e será, comemorada no dia 20 de novembro de XXXX… não sei de que ano! A utopia do fim de todo e qualquer sistemas legais e informais de discriminação e segregação.
Infelizmente, ainda tem uma questão fundamental a ser enfrentada que é a maneira como a sugestão de unidade e igualdade serve para desviar a atenção do racismo social abrangente, que se manifestou historicamente não só no alijamento da população afro- descendente, como também na segregação e na assimilação forçada de inúmeros grupos indígenas e de amplos contingentes de imigrantes alemães, italianos, judeus, japoneses e árabes.
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