O Brasil viveu na primeira década do século XXI um período de estabilidade política, crescimento econômico, florescimento cultural, avanços comportamentais, afirmação de direitos sociais, individuais e coletivos. Havia um inegável clima de otimismo, e a imagem do país no mundo era extremamente positiva: o Brasil era um laboratório de soluções para os problemas comuns da humanidade.
Quando Gilberto Gil, então Ministro da Cultura, tocou “Toda Menina Baiana” na Assembleia Geral da ONU, acompanhado pelo secretário-geral da organização Kofi Annan tocando percussão, havia um reposicionamento do lugar do Brasil no mundo. Nosso país emergia como um global player capaz de promover diálogos em defesa da paz, da diversidade cultural, da defesa do meio ambiente, de um maior equilíbrio na distribuição das riquezas e dos recursos econômicos e naturais do planeta.
Um paciente que houvesse entrado em coma nessa época e despertasse nos dias de hoje poderia duvidar que estivesse vivendo no mesmo país: o Brasil tem um presidente não eleito, que amarga o pior índice de popularidade desde o advento das pesquisas de opinião. Para a maioria da população, segundo as mesmas pesquisas, a situação tende a piorar, e não a melhorar, no futuro próximo. E, para além dos problemas oriundos do governo, a sociedade brasileira dá sinais claros de retrocesso, com o fortalecimento, na esfera pública, de pautas e agendas regressivas, baseadas no preconceito, na intolerância e no moralismo conservador.
Episódios ocorridos nas últimas semanas dão o tom: os ataques do Movimento Brasil Livre (MBL) a exposições de arte e performances em museus e centros culturais de Porto Alegre e São Paulo encontra respaldo e apoio em parte expressiva da sociedade brasileira. Se em meados do século XX a burguesia paulistana foi a grande incentivadora da criação de museus e do desenvolvimento das artes no país, hoje vemos o prefeito de São Paulo se manifestar em defesa dos “valores da família brasileira”, fazendo coro ao MBL.
A criminalização da política e da gestão pública é outro aspecto da escalada conservadora. O “partido judicial”, em aliança com os meios de comunicação, está ditando a agenda do país, em rota de colisão com a democracia e a autonomia dos poderes e das instituições. O suicídio do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Luís Carlos Cancellier de Olivo, motivado pela exposição ao linchamento jurídico e midiático promovido pelos juízes federais da escola de Sérgio Moro, deve servir como advertência. Hoje, basta uma acusação e uma investigação em andamento para que um cidadão seja tratado como culpado e execrado publicamente. Atropela-se o devido processo legal e a presunção de inocência, fundamentais para o exercício da justiça em um estado democrático.
Os sintomas do fascismo são cada vez mais evidentes em nossa sociedade. O ovo da serpente está sendo chocado diante de nós. Para resistir à escalada obscurantista, será preciso mais do que certezas absolutas e verdades incontestáveis. Do lado dos que resistem e promovem outros valores, o desfile de discursos contundentes, com ataques àqueles que pensam de forma diferente, modus operandi comum nas tretas das redes sociais, terminam por contribuir para um ambiente de intransigência e polarização.
Para sairmos da vanguarda do atraso e voltarmos a trilhar os caminhos do avanço civilizatório, é preciso exercitar – na prática, e não só no discurso – valores de tolerância, cooperação, solidariedade e respeito à diferença.