A verdade nos libertará

 

Passa um pouco das três da madrugada e não é possível dormir. Pessoas são agredidas, ameaçadas, imagens de sangue e dor nas redes sociais, nos filmes da televisão, na cidade e no campo. Durma-se com um barulho desses! É a exclamação que não me sai da cabeça. Seria um lamento? Uma reclamação? “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”, disse o monstro inspirado na Bíblia. Que falta de juízo! A verdade verdadeira está anos-luz distante dele e da sua gente que aponta armas imaginárias entre sorrisos para fotos em templos onde João não poria os pés.

Pastores de lobos atraem com ódio dirigido ovelhas descrentes e ansiosas por verdades que não libertarão porque são mentirosas. Palavras perdem assim o sentido e as pessoas as repetem porque são palavras fáceis, e cresce uma legião cega pela raiva inexplicável, e ganha as ruas em espasmos da mais pura barbárie. Espanca-se um por causa do boné do MST, xinga-se outra pela camisa vermelha, mata-se o capoeirista porque votou no outro candidato, grava-se a faca a suástica na eleitora do PT. Neste pé estamos.

Isso veio num crescendo desde as manifestações pelo impeachment, há dois anos. Uma mulher indignada fez um discurso diante da bandeira do Japão porque é um círculo vermelho sobre fundo branco e na sua mente conturbada seria uma alegoria comunista da bandeira nacional. A ignorância reina e dita regras e comportamentos como não se via há tempos. Mas sempre esteve aí, nas escolas onde crianças e adolescentes nunca tiveram liberdade sequer para formar um grêmio estudantil, o princípio da convivência democrática e do respeito às diferenças. Nas faculdades onde alunas são violentadas em ritos de passagem. Em academias de polícia que ensinam os futuros defensores da sociedade a exaltar em coro nos exercícios físicos a tortura e a morte. Em plena rua, diante de todos, como a coisa mais natural desse mundo.

Isso vem de mais longe, da construção do Brasil debaixo do chicote, do silêncio, da escravidão negra, da servidão humana, da indignidade. O que sai da boca do capitão e do general nesta campanha é isso, represado na garganta desde 2003. Por isto as palavras ganham vida entre os raivosos da desigualdade social, os que chamam mulher de vaca e vadia, chutam crianças, esmurram e assassinam em total impunidade. Porque polícia existe é pra matar bandido, juiz está aí pra condenar dissidente, irmanados no sentimento de resgate do país que se perdia em avanços econômicos e sociais até então inéditos. “Direitos humanos para humanos direitos”, não é isso? O candidato pode dizer o que quiser e bem entender, dedo em riste como o cano de um revólver, olhar rútilo. Não fala: vocifera, esbraveja, zurra ameaças a torto e a direito, no que é ecoado pelos fariseus da nova era. Sempre em nome de Deus, da pátria, da família, da castidade, da honestidade, da virilidade, da força bruta.

Neste clima insano que assombra os povos de outras partes pela selvageria o Brasil corre o sério risco de cair na escala civilizatória a um patamar não imaginado nas ditaduras do Estado Novo e de 1964. As traições, as denúncias infundadas, a prisões ilegais, as mortes no cárcere, as torturas, os linchamentos públicos, os justiçamentos, tudo será liberado, aceito e até estimulado e premiado. Não como antes, com algum escrúpulo, mas de peito aberto e sem qualquer vergonha. Quem sabe, então, chegaremos a uma guerra real que nos permitirá conhecer a verdade e nos libertarmos do lodaçal onde nossa ignorância nos instalou. Compete a nós evitar este trágico desfecho: Haddad 13!