Uma mulher como tantas outras, mas com uma história excepcional: Marielle e a favela da Maré
Marielle Franco era uma mulher como muitas outras: mãe de um jovem de 18 anos, uma mulher trabalhadora que lutou muito para conseguir uma educação universitária. Ela nasceu em uma família de migrantes do Nordeste e foi criada na favela da Maré, bairro do Rio onde residem atualmente 140 mil habitantes.
A favela da Maré, onde Marielle nasceu, foi ocupada por volta de 1940. Alguns anos depois, foi criada a primeira Associação de Moradores para melhorar a área. A história dos habitantes da Maré, portanto, é de ação coletiva e isso se reflete na trajetória pessoal de Marielle. Foi a organização coletiva na Maré que levou à construção de ruas, à instalação de energia elétrica e outros empreendimentos significativos para o bairro.
Foi também a organização coletiva dos moradores da Maré que criou em 1988 a comunidade ‘Pré-Vestibular’. Marcelo Freixo, deputado estadual que trabalhou com Marielle na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, foi professor do Pré-Vestibular da Maré. Ele e muitos outros criaram este curso, e a iniciativa se espalhou para outras favelas da cidade, tornando-se um movimento social imparável.
Marielle já tinha 23 anos quando entrou na universidade, tinha um filho pequeno, trabalhava, como fazia desde os 11 anos, mas foi uma experiência que abriu um mundo totalmente novo para ela.
Marielle foi aluna do curso ‘Pré-Vestibular’ da Maré em 1998, após o nascimento de sua filha Luyara. Quando Luyara nasceu, Marielle tinha apenas 19 anos. Ela havia deixado a escola e decidiu voltar a estudar na tentativa de entrar na universidade. Após algumas tentativas, Marielle foi aceita no curso de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, com bolsa para alunos da Maré.
Sua experiência universitária, portanto, não era a dos outros alunos. Filiou-se inicialmente ao PT, Partido dos Trabalhadores do Brasil, passando depois ao PSOL, Partido Socialismo e Liberdade, pelo qual foi eleita vereadora em 2016.
Repressão policial e defesa dos direitos humanos
Sua militância, mesmo antes de se alinhar a partidos políticos, sempre foi na área de direitos humanos. Para os moradores da favela, a luta pela garantia de seus direitos humanos é fundamental, porque é uma luta pela própria sobrevivência.
De fato, muitos moradores das favelas perderam seus amigos e familiares por conta da violência de traficantes, policiais ou em confrontos entre os dois. O caso de Marielle Franco não é diferente: ainda adolescente, ela perdeu um amigo que foi assassinado na Maré durante um confronto entre a polícia e os narcotraficantes. A dor e a indignação que sentiu foram fundamentais para conectar Marielle ao mundo da política.
Primeiros anos de militância política no Partido Socialismo e Liberdade (PSOL)
Em 2006, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) lançou Marcelo Freixo como candidato a deputado estadual sob a bandeira da promoção dos direitos humanos. Marcelo, professor de história nas escolas e no pré-vestibular da Maré, foi um ativista local que inicialmente trabalhou com presos e suas famílias ajudando aqueles cujos filhos e filhas foram assassinados pela polícia militar do Rio de Janeiro.
Marielle aderiu à campanha de Freixo na Maré e depois foi convidada a integrar seu gabinete e participar da Comissão de Direitos Humanos, que presidiu. O trabalho de Marielle foi essencial para a Comissão de Direitos Humanos.
Ela rastreou casos de massacres e execuções políticas, prestou apoio jurídico e psicológico às famílias e exigiu que as autoridades agilizassem seus processos de investigação. Enquanto na Comissão, ela também trabalhou com as famílias dos policiais militares que morreram enquanto serviam para garantir que suas mortes fossem devidamente investigadas e suas famílias protegidas de acordo com a lei. É nesse período que Marielle se posiciona como ativista dos direitos humanos e sua candidatura começa a tomar forma.
Marielle trabalhou com Freixo entre 2006 e 2016, quando ele se candidatou a prefeito e ela a vereadora pela primeira vez. Sua campanha constituiu um marco de referência fundamental para a história política da cidade.
Como mulher, negra, favelada e ativista de direitos humanos, conquistou o apoio de diversos grupos – favelados, intelectuais, vários movimentos negros, mulheres, estudantes universitários – que viam em Marielle uma candidata radicalmente diferente dos outros e, como tal, apresentou uma oportunidade para um novo tipo de política e, com ela, um novo tipo de mundo.
Sob o lema “Sou porque somos”, a campanha de Marielle articulou importantes ideias de unidade, representatividade e a possibilidade de ter um ator político diferente dos atores políticos tradicionais do Brasil. Dos 51 vereadores eleitos em 2016, apenas seis eram mulheres e apenas uma, além de Marielle, era negra.
A mudança que queríamos ver em nossas instituições foi encarnada por ela. Marielle era diferente deles, mas era como uma de nós: vinha de lutas, movimentos sociais, coletivos universitários negros, grupos carnavalescos, cultura do artista funk. Ela representava uma forma diferente de viver, circular pela cidade, se engajar na política, de lutar. A noite em que Marielle foi eleita foi uma das noites mais felizes de nossas vidas.
A eleição de Marielle como vereadora em 2016 e a crescente militarização do Rio de Janeiro
O contexto político do Brasil em 2016 foi bastante diferente do atual, principalmente no Rio de Janeiro. Embora a cidade tenha sido governada por partidos de direita por mais de 30 anos, em 2016 um candidato de esquerda conquistou 40% dos votos para o cargo de prefeito. O PSOL elegeu quatro vereadores na votação mais significativa do partido até agora. Marielle foi eleita em uma votação surpreendente de 46.502 votos, fazendo dela a quinta pessoa mais votada da cidade e a segunda mulher com maior número de votos.
Marielle Franco presidiu a Comissão de Defesa da Mulher da Câmara do Rio de Janeiro e levou o tema aos debates legislativos. Seu trabalho, junto ao PSOL, também foi fundamental para que o partido denunciasse diversos esquemas de corrupção.
Seu período como vereadora foi marcado por uma forte ênfase nos direitos das mulheres e na situação das populações que vivem em favelas. Marielle Franco presidiu a Comissão de Defesa da Mulher da Câmara do Rio de Janeiro e levou o tema aos debates legislativos.
Seu trabalho, junto ao PSOL, também foi fundamental para que o partido denunciasse vários esquemas de corrupção que existiam na cidade ligados à máfia no controle do sistema de transporte público, bem como às empreiteiras e construtoras envolvidas na construção de estádios para a Copa do Mundo e Jogos Olímpicos.
A luta pelos direitos LGBT não teve destaque no ativismo de Marielle, mas o tema ganhou importância depois que ela declarou publicamente seu relacionamento com a arquiteta Mônica Benício. As duas se conheceram na Maré, onde já participavam dos mesmos círculos ativistas, mas só começaram o relacionamento em 2015.
Embora o período em que Marielle atuou como vereadora tenha sido marcado por sua conduta corajosa e vibrante, a situação na cidade do Rio de Janeiro começou a piorar e é, hoje, ainda pior do que quando Marielle foi eleita em 2016.
Com o impeachment da presidente Dilma Roussef naquele mesmo ano, a repressão e os atos arbitrários do governo brasileiro só se intensificaram. Embora a vivência dos pobres e negros no Brasil sempre tenha sido marcada pela violência, desigualdade e injustiça, após o impeachment – mais apropriadamente definido como golpe parlamentar e judicial – a situação se agravou ainda mais.
Em fevereiro de 2018, o governo de Michel Temer, que assumiu o poder após a derrubada de Dilma Roussef, ordenou uma intervenção federal no estado do Rio de Janeiro. Em comunicado oficial, Temer declarou que o objetivo da intervenção era “… pôr fim à grave situação de ordem pública” no estado.
Como parte do decreto, o governo nomeou um general encarregado de intervir no estado, que recebeu autorização federal para infringir as normas do estado percebidas como conflitantes com as medidas necessárias para o avanço da intervenção.
Com essa medida, o presidente Temer, que tinha baixíssimo apoio popular e enormes dificuldades em aprovar reformas igualmente impopulares como a Reforma da Previdência, mudou o foco de sua política. A questão da segurança, como bem sabemos, mobiliza corações e mentes através do medo. E é esse medo que permite que os atos arbitrários do governo sejam tolerados e até defendidos pela população.
Entretanto, não foram eventos isolados na história recente do estado do Rio de Janeiro. Em 2018 o estado completou uma década de experiência de convivência com a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), uma iniciativa do governo realizada em 38 favelas cariocas, afetando diretamente os 1,5 milhão que ali vivem. O programa da UPP, que começou em 2008, consistia em uma ocupação militar permanente em determinadas favelas.
Desde a repressão de 2013 às manifestações políticas de massa em todo o País nos tem feito experimentar intensamente a transformação dos espaços da cidade em campos de batalha, ultrapassando as fronteiras das favelas e periferias. A “guerra às drogas”, que na realidade sempre foi uma guerra contra os pobres e os moradores das favelas, fortaleceu seu caráter militar.
O exército ocupou a favela da Maré por 14 meses. Segundo a página do Ministério da Defesa, “para os militares, a ocupação da Maré é considerada um conflito moderno. Uma guerra irregular, sem fronteiras, contra um inimigo disperso.” Da mesma forma, o programa da Unidade de Polícia Pacificadora, embora baseado nos mesmos princípios da polícia regular, anunciou as medidas repressivas como parte dos programas sociais e ampliou efetivamente a dinâmica de controle exercida sobre os moradores das áreas ocupadas.
A militarização tem raízes históricas profundas em nosso país. Entre 1964 e 1985 o país viveu sob um regime militar implacável, onde as liberdades cívicas e políticas foram significativamente comprometidas.
Nesse sentido, nossa experiência democrática é recente e, portanto, frágil, principalmente no que se refere às possibilidades organizacionais e de participação política dos moradores das favelas. As associações de favelas foram violentamente reprimidas durante o regime militar e, apesar de terem experimentado um grande renascimento nas décadas de 1980 e 1990, foram suprimidas desde então. O crescimento da militarização como método de governo nas regiões pobres do País representa um risco à sua participação na reconstrução do regime democrático brasileiro.
As eleições presidenciais de 2018 foram mobilizadas pela polarização. Jair Balsonaro, ex-capitão do Exército, defende as ações das Forças Armadas durante a ditadura militar. Suas alegações também são apoiadas por seu vice-presidente e outros membros do governo.
Desprezam o fato de que durante a ditadura, muitos cidadãos foram assassinados, dos quais pelo menos 500 casos foram reconhecidos pelo Estado como desaparecimentos políticos, e onde milhares de pessoas foram presas e torturadas ilegalmente. Investigações recentes identificaram o extermínio de mais de 500 indígenas, além de mortes não registradas.
Foi também durante a ditadura militar que mais de cem mil favelados foram violentamente expulsos de suas casas e realocados para lugares distantes, onde não há urbanização. Esses atos violentos muitas vezes passam despercebidos, apresentados como custos inevitáveis da modernização e da criação da ordem no país.
Essa ideologia está se tornando cada vez mais hegemônica no Brasil e foi contra ela que Marielle se levantou. Como resultado de sua militância pelos Direitos Humanos, quando foi decretada a intervenção federal no Rio de Janeiro, Marielle tornou-se uma das quatro relatoras conselheiras da Comissão da Câmara para acompanhar a Intervenção Federal.
O trabalho da Comissão consiste em recolher informações sobre o desenvolvimento das operações, articular iniciativas entre o Estado e a sociedade civil e denunciar abusos e comportamentos arbitrários. No entanto, após a execução de Marielle, pouco se ouviu sobre as ações da comissão. O ex-presidente Michel Temer usou a morte de Marielle para justificar a continuidade da intervenção, apesar de sua posição desde o início contra a intervenção. Segundo ela, tinha um potencial letal contra a população da favela.
Evidentemente, Marielle seria contra a intervenção federal. Sua dissertação de mestrado, discute as raízes sociais que legitimam a submissão dos favelados por meio da análise do projeto das Unidades de Polícia de Manutenção da Paz (UPPs).
Publicada em livro, sua obra apresenta resistências populares e alternativas para a produção de uma segurança pública diferenciada, que considere os meios de subsistência dessa imensa corte de cidadãos brasileiros, da qual Marielle fazia parte e representava.
O trabalho de Marielle também contribui para compreender a sobreposição entre a militarização desses territórios e as mudanças econômicas observadas na cidade do Rio de Janeiro, tanto no que se refere à adoção de políticas neoliberais, quanto aos impactos de eventos – como o mercado imobiliário especulação que afetou o entorno das favelas com as UPPs.
Assim, o ataque político contra a vereadora do PSOL Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes talvez seja a expressão mais terrível dessa chamada guerra que vivemos no Brasil, que promete segurança mas traz mais morte e autoritarismo.
Marielle foi executada na noite de 14 de março de 2018, com quatro tiros – três na cabeça e um no pescoço. Seu motorista, Anderson Gomes, também foi vítima. As investigações conseguiram identificar quem matou Marielle, mas não quem a mandou matar.
Sabemos que na semana em que foi executada, Marielle havia denunciado a ação arbitrária de dois policiais do Batalhão de Polícia Militar. Ela os acusou de vários crimes, incluindo pertencer a um grupo de milícias. Milícias são grupos de soldados ou ex-soldados que oferecem serviços de segurança ilegais a moradores de locais específicos, que, caso se recusem a contratá-los, são potencialmente assediados, agredidos e até mortos. As milícias também exploram serviços como combustível e transporte, cobrando valores mais elevados.
Tudo indica que Marielle foi executada para silenciá-la e paralisar sua luta em defesa dos direitos dos favelados, das mulheres, dos negros e da comunidade LGBT+; isto é, da classe trabalhadora explorada e degradada.
Sabemos também que uma vereadora que era negra, lésbica, favelada, e que falava e discutia com os homens de igual para igual despertou o ódio de muita gente. Há algum tempo, por exemplo, apoiadores de Bolsonaro quebraram uma placa em homenagem a Marielle exposta em praça pública no Centro do Rio e divulgaram o ato nas redes sociais. Até hoje essa mulher corajosa desperta a ira dos poderosos, dos racistas, dos machistas.
No entanto, Marielle não desperta apenas ódio. A morte de Marielle também provocou tristeza, indignação e vontade de continuar sua luta. Estamos aprendendo a transformar nossa dor, nosso luto, em luta.
Milhares de pessoas saíram às ruas para exigir justiça para Marielle e Anderson. Manifestações ocorreram em todo o mundo. Marielle foi homenageada por diversas escolas, universidades e coletivos culturais.
No dia 29 de setembro de 2019, milhões de pessoas saíram às ruas do Brasil contra o fascismo, representado pela candidatura de Bolsonaro, e o nome de Marielle foi cantado e gritado por todos. Principalmente pelas mulheres presentes, que organizaram e protagonizaram as manifestações. Neste momento de barbárie, não sabemos o que o futuro reserva para o Brasil.
Continuaremos gritando, denunciando sua morte e exigindo justiça. Justiça para ela e para tantos brasileiros, que são desrespeitados, violados e massacrados. Continuaremos a lutar. Lutar como Marielle Franco.
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