Aborto: o Estado contra as mulheres das periferias

Créditos: Bárbara Dias / ANF

“Eu senti muita dor, uma dor absurda, nunca irei me esquecer. Não desejo isso a ninguém”. Jéssica Pereira, de 25 anos, é moradora do bairro Pacheco, São Gonçalo. Sua história confirma a realidade de muitas mulheres negras das periferias quanto ao direito ao próprio corpo, em especial, no caso do aborto – mesmo quando se fala de aborto espontâneo.

Os números da Pesquisa Nacional do Aborto de 2016 mostram que a maior parte das mulheres que buscam interromper a gravidez tem cor e origem em comum. As mais prejudicadas pela proibição do aborto no Brasil são mulheres negras, pardas e indígenas, com baixa escolaridade e renda, principalmente das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Sem recursos para arcar com a criação de um filho, muitas recorrem a maneiras não convencionais de encerrar o problema, o que gera óbitos e traumas. O documento expõe ainda que a criminalização e a repressão não diminuem o número de abortos, e ainda impedem que as mulheres busquem informações e acompanhamento necessário.

A interrupção da gravidez é um tabu até mesmo nas circunstâncias que a lei permite. O caso de Jéssica Pereira foi mais que cotidiano. Em 2013, ela passou por um aborto espontâneo. Ao procurar socorro médico no Hospital Estadual Azevedo Lima, em Niterói, viu o início de um pesadelo: “Desmaiei de tanta dor. A menina da recepção disse que não poderia me atender porque eu não tinha sangramento”, conta.

Jéssica ficou três horas sozinha numa sala, aguardando o atendimento. Mesmo sendo atendida, sofreu o julgamento de, pelo menos, seis profissionais, entre médicos e enfermeiros, além de não receber qualquer atendimento psicológico. “Eu me senti muito culpada. Os médicos e os enfermeiros acham que você provocou e que por isso merece sofrer”.

 

Um golpe certeiro no direito

Tramita agora no Congresso Nacional a PEC 181/2015. O projeto originalmente previa o aumento do período de licença-maternidade para mães em caso de parto prematuro, mas ganhou um artigo que altera o texto e propõe definir o direito à vida na concepção, o que torna ilegal qualquer prática de aborto.

Para a vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ), que é autora de projetos de lei que visam ao acesso e garantia de direitos sexuais e reprodutivos, a PEC 181 é um retrocesso: “São homens querendo legislar sobre a vida das mulheres”, opina. A vereadora afirma também que “os maiores impedimentos ao aborto são o acesso à informação e ao atendimento qualificado”. Isso torna as mulheres negras e periféricas mais vulneráveis às suas consequências.

 

O lucro que se sobrepõe à vida

A enfermeira Silvana Gomes já testemunhou as condições precárias da prática na clandestinidade. Ao trabalhar por um mês em uma clínica de aborto no Rio de Janeiro no início dos anos 1990, ela presenciou a ida de mulheres de diferentes classes sociais buscando interromper a gestação. Naquela época, ainda não havia distribuição de preservativos na rede pública de saúde, o que dificultava mais a prevenção de gravidez indesejada.

Silvana lembra que muitas mulheres não possuíam nenhuma informação sobre planejamento familiar nem a respeito de como o aborto acontecia na clínica. Quem não tinha dinheiro para pagar entre 1 e 2 salários mínimos pelo procedimento corria os riscos de métodos não convencionais, como remédios abortivos e até agulhas de crochê. Para ela, o aborto segue ilegal por interesses financeiros: “Acredito que a legalização não acontece porque tem muitos que lucram com isso. Rolava muito dinheiro. Quem fazia a segurança da clínica eram policiais, para avisar quando tinha batida”.

 

Publicado no mês de outubro de 2017 no jornal A Voz da Favela