Repercute mal entre moradores, comunicadores, militantes do Complexo da Maré e especialistas em direitos humanos a capa deste domingo, 21, do Jornal Meia Hora. O periódico afirma que a liderança do tráfico de drogas local teria bancado a instalação de piscinas de plástico em uma rua da Favela Nova Holanda. Ativistas acusam o veículo de criminalizar a pobreza e pretendem fazer um ato em repúdio à publicação no próximo domingo, 28.
A chamada “Piscinas suspeitas na Maré” se refere à denúncia, sem citar fontes, de que piscinas de plástico teriam sido instaladas na favela a mando de um traficante local. Texto similar foi publicado na reportagem “‘Piscinas do tráfico’ na Nova Holanda”, do Jornal O Dia, no sábado. Ouvido pela equipe de O Dia, o delegado federal aposentado Antônio Rayol chegou a dizer que isso seria uma estratégia para bloquear as ruas da favela contra incursões policiais: “Você tem aí um obstáculo com dezenas de crianças no caminho”. Procurada, a Polícia Civil não confirma se há investigações em curso sobre o assunto.
A matéria foi motivada pela viralização na última semana de uma foto compartilhada pelas páginas da Favela Nova Holanda e do coletivo Maré Vive. Ela mostra crianças se divertindo em uma rua da localidade do Tijolinho. Até o fechamento desta reportagem, já são mais de seis mil curtidas na publicação original.
Apesar das supostas denúncias, a fotografia em questão sequer é recente. Segundo fontes locais, a imagem é de 2016 e já havia sido publicada anteriormente, viralizando só agora. A autoria é desconhecida. Além disso, a foto retrata uma prática bem comum nas favelas: a instalação de piscinas no meio da rua, por parte dos próprios moradores, para uso coletivo, assim como o compartilhamento de mangueiras, chuveiros e até caixas d’água no verão – vale qualquer artifício para aliviar família, amigos e vizinhos do intenso calor do Rio de Janeiro.
A capa do Jornal Meia Hora indignou os moradores da Maré. “Na maré tem pessoas que trabalham e não depende do tráfico para ter uma piscina”, afirma uma seguidora na página do periódico. “Voces só podem estar sem o que escrever, né possivel! Aqui na Maré o que mais tem é piscina na rua, e olha que nem é o tráfico que compra e sim MORADOR que se mata de trabalhar pra pagar as parcelas”, ratifica outra. O assunto ainda rendeu memes, como versões da capa de domingo que criminalizam atividades de lazer típicas da Zona Sul da cidade, como o vôlei na praia.
“Anti-jornalismo”
A iniciativa também revoltou os comunicadores populares, de dentro e de fora da Maré, que, com frequência, denunciam o tratamento preconceituoso da mídia com a favela. “É de uma falta de caráter muito grande. A nossa única forma de lazer é a rua. As praças são escassas na periferia. A gente acaba fazendo da rua a extensão da nossa casa”, explica Josinaldo Medeiros, do Maré Vive. Para ele, a imprensa só se interessa em falar da favela quando o assunto é violência. “Quer fazer uma denúncia? Vai na Clínica da Família. A UPA tá quase fechando. As escolas estão sucateadas, os garis estão sem receber. A gente passa por um sufoco todo verão, (com) quedas constantes de energia à noite, de dia”, enumera.
A coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes (CESeC) e uma das autoras do livro Mídia e Violência: Novas Tendências na Cobertura de Criminalidade e Segurança no Brasil Silvia Ramos classifica a capa do Meia Hora como chocante. “O texto, baseado numa foto verdadeira, reúne uma quantidade de preconceitos e procedimentos de falseamento que deveria ser usado como exemplo de anti-jornalismo nas faculdades”, afirma.
Para Silvia, a publicação reflete o desespero de muitos veículos impressos para sobreviver às dificuldades financeiras que atingem a grande imprensa – em especial, o Grupo O Dia, que há anos enfrenta problemas. “Mostra a profunda crise dos jornais impressos, que algumas vezes abandonam todos os escrúpulos para aumentar a venda em banca. Zero de jornalismo, zero de apuração, mil de oportunismo e criminalização dos moradores das favelas”, finaliza. Josinaldo reitera: “Não dá nem pra chamar isso de jornalismo. É qualquer outra coisa, menos jornalismo”.
Ativistas de diversos coletivos de favela já se articulam para fazer um ato de repúdio à capa do Meia Hora no domingo que vem, 28. O evento Piscinaço no Meia Hora pretende montar piscinas de plástico em frente à redação do jornal, na Lapa, para protestar. Eles também vão divulgar em breve uma carta de repúdio ao periódico.