O problema da cracolândia, na região central de São Paulo, vai muito além de um problema local e pontual, com políticas que atendam apenas aos usuários. Em primeiro lugar, deve-se admitir que não existe uma única cracolândia, e sim, várias, em todos os lugares, e que não são só centrais, mas espalhadas em todos os espaços urbanos segregados, principalmente nas periferias.
A cracolândia possui extenso histórico de intervenções e programas sociais, todos sem nenhuma efetividade ou resultado concreto. Em setembro de 2005, criaram o projeto Nova Luz, da gestão Serra-Kassab, que nunca saiu do papel. Em fevereiro de 2008, o então prefeito Gilberto Kassab enviou tropas da Guarda Civil Metropolitana e da Polícia Militar para a região e afirmou, sem nenhum fundamento: “Não, não existe mais a cracolândia. Hoje é uma nova realidade”. Em janeiro de 2012, a Operação Centro Legal expulsou, com 300 homens da Polícia Militar, pessoas da Luz. Os dependentes que se concentravam na rua Helvétia se dispersam para outros pontos da região.
Em janeiro de 2014, o prefeito Fernando Haddad cria o Programa Braços Abertos. Assistentes sociais e funcionários da prefeitura retiram usuários e limpam a rua. 300 pessoas foram cadastradas no programa, mas não houve extinção do tráfico de drogas local. No mesmo mês, três policiais civis à paisana vão ao local para prender um traficante e usuários reagem com paus e pedras. A confusão aumentou com chegada de reforços e terminou com cerca de 30 detidos. Um ano e três meses depois, a desarticulação entre prefeitura e governo do Estado resultou em bombas de gás, furtos a pedestres e depredação de ônibus, com retorno do fluxo de usuários de crack a região da rua Helvétia. Mais 17 meses depois e a ocupação do Cine Marrocos e rua Helvétia por 500 homens da Polícia Militar acabou com 32 pessoas detidas. Agora, aconteceram incursões policiais para a prisão de traficantes locais e desapropriações indevidas com demolições arbitrárias. Três pessoas ficaram feridas sob os escombros e outras 53 acabaram presas.
A cracolândia tem raça e classe social. Ela é negra. Ela é pobre. Sim, brancos abastados da classe alta também estão ali, perambulando em busca de centavos para queimar uma pedra. Crack não é droga só de pobre ou favelado. Mas são esses os que mais sofrem com a perseguição descabida das políticas de exclusão e execução. Se o problema está nos olhos de quem vê, a solução simplista está na expulsão, apreensão e execução dos usuários. Assim, “a cracolândia acaba”.
Infelizmente, a repressão faz apenas com que a cracolândia deixe de existir naquele lugar e se instale em qualquer outro espaço de segregação da área urbana. No caso da mais famosa de São Paulo, a cracolândia caminhou exatos 290 m: da Rua Helvétia para a Praça Princesa Isabel. Cerca da metade dos usuários espalhou-se pela cidade, mostrando que o problema da dependência química está longe de ter desfecho digno.
Mas é fato que o discurso reapareceu. O governo do Estado começa a vender a área como um “espaço bom para investimento e moradia”, apresentando inclusive croquis e projetos de revitalização. A certeza ainda está à vista: não extinguiu-se o problema do uso de crack. Para a prefeitura e para o Estado, a ideia de atendimento multiprofissional encontra-se na privatização dos serviços e também das áreas da cidade. Em vez de aparelhar equipes e instituições que atendam de maneira pública e gratuita, respeitando as já instituídas políticas sociais (SUS, SUAS, etc.), transfere-se dinheiro público para instituições particulares.
Após três dias da demolição de alguns imóveis, o prefeito João Dória Jr. resolveu montar uma tenda de atendimento aos usuários na própria Helvétia, ao lado da Unidade do Programa Recomeço, de responsabilidade municipal. Segundo a própria prefeitura, desde o dia 26/05/2017, cinco dias após a operação , foram feitas 1.159 abordagens, sendo que 550 pessoas aceitaram atendimento e apenas 26 concordaram em internar-se por vontade própria.
O espaço destinado aos usuários, com capacidade de mais de 2.000 atendimentos por dia, encontra-se vazio. Retirou-se diversos profissionais das unidades de saúde da região central (psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, agentes de saúde), em caráter emergencial, e colocou-se neste espaço sem efetivo trabalho e, pior, desfalcando a já desaparelhada rede de assistência social e de saúde do município.
Ainda para completar a falta de articulação das políticas sociais e de saúde entre Estado e Município, não há abrigos e leitos suficientes para um atendimento multiprofissional que vise, de fato, a redução de danos. Só o Complexo Prates, um dos principais centros de acolhimento da população de rua na cidade de São Paulo, atendeu 700 pessoas apenas no dia 29 de maio. A capacidade do espaço é de 300 atendimentos por dia. Com falta de leitos na região central, o usuário é jogado para locais mais distantes, que também não estão aparelhados para o atendimento. Com isso, eles acabam preferindo voltar para as ruas.
Para forçar a realização do tratamento de usuários, Dória solicitou internação compulsória na justiça, ainda na sexta, 26, decisão que acabou sendo absurdamente concedida por algumas horas. Em 28 de maio, iniciou-se o embate entre justiça e prefeitura: o mesmo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) suspendeu a liminar da internação compulsória, e extinguiu na terça-feira, 30, o pedido da prefeitura para remover usuários de drogas da região da Cracolândia, proibindo este tipo de ação no local. Ou seja, 2 x 1 para a justiça! Cabe lembrar que o mesmo pedido já havia sido feito na gestão de Kassab, em 2012.
E assim segue a necessidade do prefeito em ser pop. Utiliza cadeiras de rodas para mostrar as falhas de acessibilidade e inclusão, que são responsabilidades do governo local. Apaga o maior corredor de grafites do mundo, reconhecido internacionalmente, para pintar um coração disforme como se estivesse praticando uma traquinagem no quadro negro da escola dos ricos. Veste-se de gari para varrer as ruas sem dar a menor valorização ao profissional que está submetido ao invisível social e ao descaso dos governos. Falta agora fumar uma pedra de crack para incutir na ideia dos cidadãos que usuário também é gente.
Enquanto as políticas públicas encararem os problemas originários do abuso de drogas meramente como problemas de segurança pública, nenhuma cracolândia tenderá a se extinguir. Pelo contrário. Apenas ampliarão seu impacto e exclusão social.