Os índios Kuikuro, de Mato Grosso, são um exemplo de prevenção à pandemia do novo coronavírus aos brancos de todo o país, sobretudo de Brasília. Em março, sem casos na aldeia, viram pelo noticiário na televisão que era importante ter atendimento de saúde lá dentro. Fizeram campanha de doações pelo Facebook, montaram um hospital improvisado na sua associação e contrataram a médica Giulia Parise Balbão, que trocou o Hospital Sírio-Libanês de São Paulo pelo Xingu, um enfermeiro e três assistentes de enfermagem. Uma oca se tornou casa de isolamento.
Giulia chegou pela primeira vez ao Xingu no final de julho e conheceu o cacique Afukaká Kuikuro, que também pegou a doença, assim como uma anciã de 90 anos. Na comunidade, que não tinha horário para atender os indígenas – foram 57 confirmações da doença, mas a aldeia estima que mais de 200 pessoas pegaram o vírus. Muitos moradores apresentaram os sintomas e não tiveram acesso aos testes. Cerca de 400 indígenas vivem no local.
“Tive momentos em que estive muito cansada porque foi muito desafiador. Afukaká dizia ‘estou muito feliz por você estar aqui, lutei muito por isso’. Isso me motivava. À noite, me chamavam e diziam ‘tal índio está com gripe, vai lá avaliar’. Eu ia de lanterna, era um número de atendimentos muito grande. Nem sei quantos por dia, mas sei que conheci todas as casas. Às vezes vivem 14, 15 pessoas em um só lugar”.
O que chamou a atenção da médica entre os Kuikuro foi a capacidade de organização em grupo antes do problema. O presidente da Associação Indígena Kuikuro do Alto Xingu, Yanama Kuikuro, ficou preocupado junto com o cacique Afukaká. A comunidade passou a arrecadar dinheiro com a ajuda de doações. Uma campanha foi feita pelo Facebook.
Antes de aparecerem os casos, a aldeia já tinha os profissionais de saúde, equipamentos de proteção individual, suporte de oxigênio e um plano de resgate aéreo em caso de complicação de algum caso grave. Mesmo com dezenas de infectados, entre adultos e idosos, ninguém morreu. Balbão acredita que o resultado positivo está ligado à capacidade de prevenção e à manutenção das regras da comunidade.
“Os Kuikuro estavam muito organizados. Organização é uma marca dessa comunidade. Eles usaram a medicina branca, os remédios que eu recomendei, mas não perderam a tradição e trouxeram as ervas que iriam precisar. Eles se prepararam, isso eu achei brilhante. Eles viram que o coronavírus chegaria e conseguiram se proteger ao máximo. Tudo foi acatado após o esforço das lideranças em conscientizar. É uma junção de fatores culturais. Eles não bebem, não fumam, não têm nenhum tipo de vício. Trabalham na roça, pescam e têm uma alimentação natural. Não têm um padrão de alimentação urbana. Não existem muitos casos de diabetes. Evitaram ir para a cidade, evitaram se aglomerar”.
Antes de chegar à comunidade, Giulia fazia chamadas em vídeo com os moradores da aldeia. No fundo da imagem, eles mostravam a fumaça das queimadas. Ela e Yanama dizem que entre julho e o início de agosto foi o período de fogo intenso na região.
“Melhorou a situação da fumaça por aqui por enquanto, mas teve muita queimada. Fiquei muito preocupado com relação a isso, porque ia juntar com a pandemia. Alguns pacientes já estavam com dificuldade para respirar. Na região do Alto Xingu temos bombeiros indígenas que lutam para apagar o fogo. Ligamos para a equipe do Prevfogo também, do governo, e eles fizeram contato para mais gente ajudar no combate”, disse Yanama.
De acordo com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), 739 indígenas morreram devido à Covid-19 até 12h10 desta sexta-feira (28). Os dados levam em consideração os relatos de associações e entidades diretamente ligadas às etnias, e mostram que 28.471 integrantes de 156 povos tiveram resultado confirmado para a doença.
O número é superior ao apresentado pela Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde. Os dados oficiais do governo apontam 376 mortes pelo novo coronavírus entre os povos, com 22.852 casos. Segundo a Apib, os indígenas moradores das cidades não estão contabilizados nos números do governo e, por isso, além de outros fatores, o balanço é menor.