Quando o presidente decretou a extinção dos jornalistas, não me pareceu uma ameaça às focas. Soou como mais uma “tirada divertida” para riso, entusiasmo e aplauso da claque aglomerada em todo lugar onde está, sobretudo à porta do Palácio da Alvorada. É lá que pela manhã sua verve mais espirituosa se manifesta, porque está com a cabeça mais leve do que no fim do expediente.
Fiquei também intrigado, visto que jornalista é espécie ameaçada há tempos. Só na última ditadura foram eliminados muitos veículos importantes de informação. Relembre comigo, sinceros leitor e leitora em extinção: O Jornal, A Notícia, Gazeta de Notícias, Luta Democrática, Correio da Manhã, Diário de Notícias, Última Hora, Tribuna da Imprensa, Jornal dos Sports e outros que não lembro.
Esses eram só diários do Rio de Janeiro que empregavam inúmeros jornalistas e abrigavam uma gama incrível de opiniões diferentes. Houve fechamentos também em outras cidades onde cabeças pensantes exercitavam sua inteligência em páginas de jornais, emissoras de rádio e publicações eventuais.
Com toda a certeza, a pluralidade de opiniões nos jornais era uma pedra no caminho dos ditadores e o sufocamento político e econômico da imprensa foi a solução adotada para implantar a “paz de cemitério” no país. Hoje o Rio de Janeiro só tem O Globo, seu filhote Extra e o jornal O Dia, longe de ser jornalismo livre e independente.
O desdobramento óbvio da degradação da imprensa foi o fim da reportagem que expunha ao leitor a situação oposta à versão oficial do “Brasil Grande”, do “país que vai pra frente”. Maior exemplo foi Realidade, da Editora Abril, mas várias outras revistas que preparavam extensas reportagens durante meses, com repórteres e fotógrafos em campo, desapareceram.
Os patrões não arcavam mais com as despesas de reportagens que seriam submetidas aos cortes da censura. As revistas como Realidade acabaram, como as grandes reportagens na imprensa em geral. Deixou de ser critério de avaliação do bom editor ou chefe de reportagem o número de repórteres formados nas redações que chefiavam.
A mediocrização se padronizou, o jornalismo relaxou, tornou-se mero exercício de repetição das versões oficiais, até chegarmos ao nível atual de autoridades, editores, colunistas, repórteres e leitores.
Os destemperos do presidente não escandalizam os jornais, seus repórteres participam passivamente do circo armado para os arroubos dos poderosos. Sequer têm consciência do papel que deveriam desempenhar no contexto da sociedade, creio que jamais ouviram falar em “quarto poder”. Já imaginaram se os veículos de comunicação se recusassem a cobrir o governo em protesto contra o baixo nível, na defesa do seu público?
A imprensa está tão apequenada que é impensável um editorial derrubar um ministro de estado, como ocorre em democracias. Mesmo ministros analfabetos, como o da Educação; ou corruptos, como o do Turismo; ou ainda desequilibrados como a ministra dos Direitos Humanos. Assim, não surpreende o presidente decretar a extinção dos jornalistas como questão de preferência pessoal.
A lembrança que me veio à mente no momento que tomei conhecimento da declaração foi o que o presidente disse a um repórter outro dia: “Você tem uma cara terrível de homossexual, mas nem por isso eu o acuso”. Deve ter sido algo neste estilo. As formulações do presidente muitas vezes escapam à compreensão plena imediata.
Porém, logo rechacei a hipótese, é grande o número de homossexuais que ganham espaço em todas as profissões e funções civis e militares, para infortúnio da família presidencial. Gays não podem ser responsabilizados pela extinção dos jornalistas entre os quais sempre atuaram com destaque desde os tempos imemoriais.
Não sendo eles, portanto, uma segunda hipótese se impôs: o presidente quer incluir jornalistas no âmbito do Ibama para que tenham o mesmo tratamento da fauna, da flora, dos rios e dos mares deste país e sofram as terríveis consequências do tratamento dispensado aos povos originários, quilombolas e ribeirinhos amazônidas.
Seria uma diferenciação em relação a outros profissionais que caíram em desgraça desde o começo do ano passado. Professores, cientistas, atores, atrizes, cantores, cantoras, intelectuais e outros seres pensantes estão permanentemente na alça de mira dos governantes, mas jornalista tem tratamento diferenciado, porque é ele quem espalha os vitupérios, o governo precisa dele para chegar ao público.
De outro lado, ele é também coadjuvante no show de auditório em que se transformaram as entrevistas e manifestações extemporâneas não somente do presidente da república, mas de seu ministério e do segundo escalão.
Outro aspecto que deve ser enfocado nesta difícil relação institucional do poder executivo com a imprensa se insere no relacionamento dos militares com os repórteres. Durante a ditadura houve vários atritos no trato rotineiro, na maioria das vezes contornados com a transferência do repórter setorista para outro ministério ou autarquia.
Era relativamente comum a autoridade “pedir a cabeça” do jornalista desafeto e o patrão conversava com o editor-chefe, encontravam uma solução que poupasse o emprego e a humilhação profissional, satisfazendo apenas em parte a autoridade.
Exemplo mais radical foi de Roberto Marinho, quando cobrado por um general da mais alta constelação golpista por manter empregados no O Globo muitos notórios comunistas. Sucinto, “nosso companheiro editor-redator-chefe” respondeu: “O governo cuide dos seus comunistas, que dos meus cuido eu”.
Podem o leitor arguto ou a suspicaz leitora imaginar semelhante postura patronal nos dias de hoje? Infelizmente, pelo andar da carruagem estamos muito mais perto de uma caça às bruxas generalizada nas redações e nas repartições públicas do que pensamos. Na realidade, fogueiras já estão acesas nas universidades e institutos federais e estaduais, conforme denúncias incessantes nas redes sociais.
Neste contexto, portanto, reafirmo e insisto que não espanta a vontade do presidente, mas chama a atenção seu desprezo pela imprensa, manifestado em inúmeras ocasiões, e aos profissionais com quem precisa lidar por força do ofício.
Ainda ao tempo de parlamentar foram escandalosos seus atritos com repórteres, sobretudo mulheres, no salão verde da Câmara dos Deputados. A grosseria atingiu até a deputada petista Maria do Rosário, um caso rumoroso que acabou na justiça.
O comportamento sexista, machista, xucro do presidente é inédito ao extrapolar as normas de urbanidade e civilidade que se espera da mais alta autoridade da república. Nem mesmo durante os generais-presidentes houve casos de baixo nível como os que se repetem na gestão do capitão-presidente. Mas devemos ter em mente que esse é o modelo vigente na sociedade e o padrão comum dos militares.
Doutrinados no pensamento único e em escolas especiais desde a infância, militares se julgam acima dos civis, mais instruídos e sabidos, donos da verdade absoluta. As atitudes do presidente espelham esta realidade de forma nua e crua.
Anunciar a extinção dos jornalistas é decretar o fim do jornalismo, ideia tentadora para os militares tanto no governo quanto nos quartéis, para viver no mundo ideal com que sempre sonharam.