Apertadores de parafusos

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A velha fábrica de maquinários estranhos – com seus parafusos de todos os tamanhos – se destacava na praça principal; era até mesmo mais imensa do que a super-catedral que construíram para catequizar as massas. Estaria mentindo se dissesse que não havia, além da cor cinza bolorenta, semelhança entre as duas monumentais edificações; é que a linguagem que ambas passam (ou insistem em passar) é de que uma existe necessariamente em função da outra.

As gentes daquela localidade – todos habituados a usarem seus uniformes também cinzas-bolorentos salpicados de graxa, quando não estão em um, compreendia-se que estavam em outro, e vice-versa, parecendo não existir modo diferente de viver que não fosse esse: “–> casa –> fábrica –> igreja”, depois: “–> igreja –> fábrica –> casa”; um eterno círculo vicioso e ininterrupto.

Todos, sem exceção, orgulhavam-se de seu ofício, apertadores de parafusos, que aliás era comum a maioria, não levando em conta a identidade sexual e nem idade. Havia também um pequeno slogan motivacional repetido feito mantra pelos apertadores de parafusos:

O PROGRESSO ACIMA DE TUDO// A ORDEM ACIMA DE TODOS// O TRABALHO ENGRANDECE E A VIDA OCIOSA É UM MAL TÃO PERVERSO QUE EMPOBRECE// PARA O BEM COMUM A TODOS, O TRABALHO DEVERÁ ESTAR EM PRIMEIRO LUGAR.

As vezes repetiam isso sistematicamente enquanto apertavam parafusos de todas as formas e tamanhos, com chaves de todos os números cobertas de óleo e graxa. Ninguém ousava conversar enquanto trabalhava; foram preparados para esse fim e se exauriam todos os dias, menos aos domingos, onde iam se viciar no ópio discursivo daquele que se intitulava pastor de ovelhas. A analogia a ovelha, nesse ponto, torna-se interessante, já que aquelas gentes eram assim, humanas – mas com características de ovelhas prontas ao matadouro.

Entretanto, em um belo dia, uma luz diferente se acendeu no outro lado da rua. Era uma porta pequena, é claro, mas o suficiente para causar alvoroço. A rotina fora quebrada e não demoraram para conversar no horário de expediente.

— Soube que abriu uma escola ali do outro lado da rua; tem uma placa escrita “Volte a estudar”. Disse um apertador magro e narigudo; curioso em como essa revelação iria atingir seu companheiro, prosseguiu na conversa que rolava clandestinamente: — Há muito tempo não se via uma escola por aqui…

— Uma escola? Indagou um homem mais velho, já no final de carreira, uma vez que na fábrica onde os apertadores de parafusos trabalham, as pessoas não conseguem se aposentar e morrem de tanto trabalhar.

— Sim, uma escola; pequena, mas uma escola – disse entre os dentes, pois uma câmera insistia em vigiá-los vinte e quatro horas sem cessar; tinham que disfarçar. — Desde a proibição, todos as escolas perderam alunos e fecharam. Acharam que o paraíso deveria começar aqui na Terra, então, pra quê estudar?. Esse tal que abriu essa escola aí ou é maluco ou perigoso, ou ainda os dois. Me disseram que ele veste uma camisa vermelha…

— Mas uma escola vai ensinar o quê? Disse uma jovem de bochechas grandes. Seus cabelos eram crespos, mas ela insistia em esticá-los para se adequar a exigência do padrão ordinário. Ela prosseguiu em sua reflexão: — Estamos muito felizes aqui, nosso patrão nos deu tudo que precisamos para nossa sobrevivência. Pra quê escolas? Aprendemos a apertar parafusos e somos felizes por isso.

— Somos? Inqueriu o mais velho. — Eu sempre quis estudar. Deixou escapar as palavras com a expiração do ar.

— Se quer saber de alguma coisa, meu velho. Pergunte ao pastor da igreja. Ele sabe de todas as coisas; é um homem muito sábio e usado por Deus. Você não precisa de escola e nem de professores. Deus tudo revela aos seus. Afirmou a moça de bochechas grandes.

— Mas que mal há em se estudar? Me lembro que minha mãe e pai, que Deus os tenha, sempre quiseram que estudasse. Eu só aprendi a ler e escrever o suficiente, também aprendi as quatro operações e só. Isso foi antes de fecharem as escolas como se fossem artigo inútil. O patrão e seus amigos, com a ajuda da grande catedral, disseram que isso era o suficiente: Ler, escrever e fazer contas. Depois apertar parafusos. Já estou velho demais e não sei se é o suficiente para eu me aposentar. Nunca sei. As contas nunca batem.

Nesse momento a câmera parou de girar e fixou o olhar no pequeno grupo, que tentava em vão disfarçar a conversa. Eles notaram a câmera fixa sobre eles. Interromperam o assunto tentando voltar à rotina. Porém, já estavam afetados de forma diferente. Não tinham como esconder a ansiedade.

Passado alguns dias, a escola do outro lado começou a receber seus primeiros alunos. Entre eles, o mais velho dos apertadores de parafusos. Alguns outros apertadores de parafusos também se matricularam e voltaram a estudar, sem saber a guerra que estavam comprando. O sistema não aceita mudanças; pessoas instruídas modificam sistemas.

Não demorou para que as primeiras interrogações surgissem em vários setores:

— Por quê tenho que ir para igreja todos os domingos?

— Por quê não posso ler outros livros de minha escolha?

— Por quê morremos de tanto trabalhar, sem ao menos usufruir do fruto de meu trabalho?

E na grande fábrica dos apertadores de parafusos, não foi diferente:

— O quê são esses parafusos?

— Por quê são necessários tantos parafusos?

— Pra quê apertar esses parafusos?

— E se fizermos greve por melhores condições e participação no lucro da empresa?

Não demorou muito para que todo o sistema degringolasse, e a caldeireira principal começasse a sofrer pane. As engrenagens que sustentam a velha fábrica estavam fragilizadas. O patrão, o bispo e todos aqueles que lucraram com os parafusos apertados e seus apertadores tiveram que intervir.

— Vocês querem estudar? – Gritou ao público

— Queremos! – Respondeu todos

— Por quê vocês querem estudar? – Perguntou o patrão

— Queremos um futuro melhor para nós e nossos filhos.

— Que tal estudarem então na comodidade da casa de vocês? Vocês não precisarão ir para a escola; é perda de tempo isso. Nós mesmos, porque somos bonzinhos, vamos providenciar o estudo de vocês e de seus filhos. Nós mesmos escolheremos uma empresa e prepararemos o material didático que seja ideal para vocês. Queremos cuidar de vocês.

— E quanto a participação no lucro das empresas? – Bradou um “conspirador”

— Oh, sim. A partir de hoje em diante, vocês não mais serão chamados de ‘empregados’; serão todos chamados de ‘colaboradores’.

As palavras eram dóceis. Não demorou muito para adoçarem e acalmarem os ânimos. Em alguns meses, não havia mais a pequena e “revolucionária” escola. O professor teve que se mudar as pressas de forma muito estranha, sob ameaças de gentes cruéis. A sua camisa nem era tão vermelha assim. Os apertadores de parafusos, agora elevados a condição de colaboradores, passaram a estudar em casa, através de tele-aulas, não saindo e nem evoluindo das quatro operações da matemática, nem tampouco discutindo os grandes temas da vida. A entonação de quem dava as aulas nesses vídeos conferências era tão medíocre, que os trabalhadores dormiam diante da tela. Se ao menos explicassem com a mesma vibração e didática do bispo que prega no domingo, na grande catedral… talvez houvesse maior motivação. Por fim, ninguém nada aprendeu, ou se aprendeu algo, foi apenas o suficiente para continuarem a ser o que sempre foram: hábeis apertadores de parafusos.

Vinte anos se passaram; os novos colaboradores agora são os filhos daquela antiga geração. São eles que agora continuam a apertar os mesmos parafusos que apertavam seus pais.

Moral: Sem a escola (adequada, laica e provocadora), o sistema que alimenta a classe dominante sempre vencerá.