Até agora foram 1.100 km percorridos, três cidades em sete dias. É intensa a jornada deste colunista por las carreteras de uma Argentina em ebulição. Escrevo este texto tomando um mate para aliviar o frio na noite da bela cidade de Córdoba, capital da província que leva o mesmo nome (aqui, o que conhecemos como estados do país são províncias).
Em Córdoba, está uma das universidades mais antigas da América Latina, a primeira a garantir o livre acesso e o ensino público e gratuito em nosso continente. É nela que nesta quarta, 13, faremos o lançamento do livro Cultura Viva Comunitária: Políticas Culturais no Brasil e na América Latina (ANF Produções, 2017). O evento vai contar com programação cultural e um debate que já se anuncia intenso, com a participação de alunos, professores, pesquisadores, gestores públicos e organizações culturais comunitárias. O livro, mesmo em português, tem despertado grande interesse por aqui. E, em breve, sai a versão em espanhol!
Já estive algumas vezes na Argentina, mas nestes dias dediquei algum tempo a uma coisa que faço muito pouco no Brasil: ver televisão. Chamou minha atenção a quantidade – e qualidade – de informações e notícias sobre a América Latina. A visita do Papa Francisco à Colômbia mereceu enorme destaque em vários canais. Os furacões que devastaram cidades do Caribe e América do Norte estão sendo abordados por vários ângulos. Enquanto a imprensa brasileira focava em Miami, por aqui se via Cuba, México, República Dominicana, Antígua e Barbuda, a ajuda humanitária que está sendo prestada pela Venezuela, lugares e fatos que não seriam notícia em nosso país. Sobre o noticiário local, vale notar a polifonia e a diversidade de narrativas: são pelo menos três ou quatro canais de alcance nacional, com posições políticas abertamente diferentes entre si, e que assumem seus pontos de vista junto à opinião pública. Para alguma coisa, certamente serviu a Ley de Medios, que quebrou o monopólio das comunicações durante os governos de Nestor e Cristina Kirchner.
Mas em todos os canais, jornais, encontros, plenárias, conversas no bar, no táxi, no ônibus, nas ruas, uma pergunta ronda a Argentina: dónde está Santiago Maldonado? O jovem artesão que se aliou à luta dos povos indígenas Mapuche, e ao que tudo indica foi vítima das violações que recrudesceram no governo de Mauricio Macri, é hoje o símbolo de uma Argentina que luta por direitos e contra os retrocessos em curso no país. O caso tomou repercussão nacional e internacional, é cada vez mais claro o envolvimento de agentes do Estado em seu desaparecimento forçado. O tema desperta a ferida da memória dos mais de 30 mil mortos e desaparecidos na Ditadura Militar argentina, uma das mais violentas do continente. O jovem desaparecido impõe ao governo Macri, até o momento, a sua maior derrota e desmoralização pública. E, assim como no Brasil, nós iniciamos nossas conversas com o “primeiramente, Fora Temer”, na Argentina é voz corrente encerrar as conversas e discussões com a pergunta que não quer calar: “onde está Santiago Maldonado?”.
Cultura comunitária e cooperação
Seguindo a nossa jornada, depois de dois dias na capital do país, saí rumo ao oeste por 517 km de estrada a bordo do transporte comunitário do amigo fotógrafo Mario Siniawski, um jovem de 70 e poucos anos que dirigiu durante oito horas, conversando sem parar com este sonolento colunista. Chegamos a América, não o continente, tampouco o país do norte, mas um pueblito de 10 mil habitantes no distrito de Rivadávia, já na região dos Pampas – que geograficamente liga o centro da Argentina ao sul de nosso país. Neste lugar chiquito, participamos do Encontro Nacional de Redes de Cultura Comunitária da Argentina, reunião de três dias que contou com a participação de cerca de 400 pessoas, representando mais de 300 organizações culturais, 30 redes de cultura e 18 províncias de toda a Argentina.
O Encontro foi bonito, potente, massivo, e reafirmou que a Cultura Viva Comunitária é hoje um movimento continental, que além de lutar e incidir na construção de políticas públicas para a cultura, se propõe também, partindo da cultura, a construir estratégias e alternativas para a esquerda e os movimento de transformação social no século XXI. “No venimos a decorar la democracia, sino a transformarla” é uma das frases que definem o movimento de cultura comunitária na América Latina. Diante de um cenário político adverso na maioria dos países da região, o movimento tem diante de si o desafio e a responsabilidade de construir de forma autônoma ambientes e espaços organizativos que nos permitam resistir e avançar, em um contexto onde mais que nunca é preciso estar atento e forte. O movimento argentino também se prepara para participar em novembro do 3º Congresso Latino-Americano de Cultura Viva Comunitária em Quito, Equador, que tem tudo para ser mais um momento importante desta trajetória comum continental.
E, por fim, uma homenagem emocionada à Cooperativa La Comunitária, organização que sediou e produziu todo o Encontro e demonstrou na prática o que é uma construção colaborativa, autônoma e feita de baixo pra cima. Mulheres e homens, crianças, idosos, vizinhos, todos empenhados de forma voluntária em realizar as atividades do encontro, servindo a comida, limpando, arrumando, organizando tudo sob intensa chuva e frio, sempre bem dispostos, humorados e sorridentes. Sob o comando delicado de Maria Emilia de la Iglesia, uma pequena grande companheira, a Cooperativa La Comunitária faz teatro, realiza experiências inovadoras de orçamento participativo e economia solidária, constrói no presente um outro futuro. Como disse durante o encontro o teatrólogo argentino Ricardo Talento: “temos que criar novas ficções para a humanidade no século XXI, e seria muito bom que estas ficções viessem do mundo feminino”. E La Comunitária nos dá pistas do caminho por onde criarmos estas novas narrativas.
Mas para concluir: dónde carajo está Santiago Maldonado?!