É barril dobrado esse coletivo! O E² (E ao Quadrado) é uma organização não governamental, sem fins econômicos, fundada em 1996 pelas irmãs e professoras Elizete Cardoso e Elenilda Cardoso, no Alto do Cabrito, periferia de Salvador, para aliar aula de reforço com brincadeiras, integração dos alunos, com a comunidade e a escola.
As atividades acontecem no espaço teatro E² e também em outros bairros da capital baiana, democratizando o acesso à arte-educação, reforço escolar, oficinas de teatro, dança, percussão, rodas de conversa e debates sobre direitos sociais, relação interpessoal e familiar etc. O embrião do projeto nasceu em 1992, com a criação de uma performance de dança para a semana da criança, um trabalho escolar solicitado por uma escola local, que se transformou no espetáculo “O nascimento de Emília”.
O coletivo presta serviços, realiza projetos e programas no âmbito da cultura a crianças e adolescentes que vivem em vulnerabilidade e risco social, com objetivo de desenvolver, através da arte-educação, o exercício da cidadania, garantia e defesa dos direitos das crianças e contribuir para efetivar a sua proteção social.
Vagner Jesus, 20 anos, chegou ao E² em outubro de 2011, através de um trabalho sobre a semana das crianças que a escola onde ele estudava apresentou no espaço. “Quando soube que existia teatro no bairro, fiquei encantado, pois não sabia que seria possível fazer teatro tão perto de casa”, comenta Vagner.
Ele se inscreveu junto com a irmã, e tiveram aulas de teatro, dança, percussão, pernas de pau, cortejo, conversas sobre o uso de drogas, gravidez na adolescência, folclore, poesia, textos, improvisações. “A atividade tour comunitário foi o que possibilitou conhecer mais sobre nosso bairro, em conversas com os moradores mais antigos e pesquisas na internet”, conta Vagner.
Vagner se apresentou no grupo O Suburdança, em Paripe, que possibilitou apresentações em diversos locais do subúrbio. “Em 2017 tive o primeiro convite para participar de teatro profissional, o Bando de Teatro Olodum”, diz, orgulhoso, Vagner Jesus.
O jovem não se desligou do coletivo mesmo com pouco tempo para se dedicar ao Sarau do Cabrito, continua colaborando com as atividades e encontros. “Estou sempre presente, mesmo com outras demandas profissionais que tenho, pois tudo o que sei hoje em relação ao teatro eu devo ao E², onde sempre busco refúgio, seja na vida pessoal ou profissional. Ali aprendi a questionar tudo, a ter visão crítica”.
A vida de Fabrícia de Jesus tem impacto através do coletivo. Ela é formada em assistente social, tem 37 anos. “Teatro É ao Quadrado forma muito mais que artista, forma gente humanizada”, explica Fabrícia, que teve primeiro contato com o local aos 13 anos.
Fabrícia sempre tirava notas baixas em matemática. O reforço escolar lhe rendeu recuperação nas disciplinas e contato com arte-educação e acompanhamento de perto. “Lembro que Elizete me deu uma bronca porque eu tinha estudado para fechar a prova, e tirei somente 8,5 e 9”
Após assistir apresentações no teatro, ela despertou o interesse pelos estudos, sempre estimulada por Elizete, que lhe sugeria temas para escrever e ler. Seus primeiros poemas foram lidos pelos colegas ali no teatro. Hoje Fabrícia de Jesus é formada em Serviço Social e multiplica o investimento cultural que recebeu no É ao Quadrado. É barril dobrado esse coletivo!
Fábio de Santana, 36 anos, ator, administrador, produtor cultural e arte-educador, também faz parte do grupo, atualmente faz parte da diretoria do coletivo. Chegou com 11 anos, em 1994, para aula de reforço e, como os demais colegas, participa das apresentações com os alunos da banca: dia dos pais, dia das mães. A referência inicial permanece: estudos, no Alto do Cabrito, é o reforço escolar das duas irmãs.
“Falaram pra minha mãe que Elisete resolveria o meu caso. Eu era um menino muito pintão na escola. Deu certo, melhorei meus rendimentos nos estudos e fui mergulhando, paralelamente, nas artes”, declara Fábio.
É de fundamental importância o quilombo cultural para o bairro histórico do Alto do Cabrito, sítio arqueológico, sede do Quilombo do Urubu. Esse grupo escreve história, traz a revolução cultural para o Subúrbio Ferroviário, pois é dali que saiu o primeiro trabalho a se apresentar no palco principal do Teatro Vila Velha, a ter uma matéria na capa do Caderno 2 do A TARDE, com uma crítica positiva do “Era uma vez o Brazil”, que ficou em cartaz. É dali, também, o embrião precursor do movimento artístico e cultural, em teatro.
“O ser humano que sou hoje é graças a esse trabalho, que foi o meu processo educacional como cidadão e artista, considero como ensino fundamental e médio, e só saí pra a faculdade, que é o Bando de Teatro Olodum. É um espaço sagrado, de transformação, ressignificação. Todos e Todas que passaram por ali saíram modificados pelo positivo. Esse Fábio Artista-Cidadão que sou, é fruto do É ao Quadrado”, desabafa Fábio de Santana.
Esse é o poder Dandariana e Zumbirana que a arte tem, do poder e da relevância que o espaço tem e zela pela comunidade. Espaço gerido por mulheres, a força feminina, sempre nos mostrando e nos dizendo.
Ali é minha raiz, sempre busco regar e alimentar essa árvore para que dê frutos e alimente novas gerações. Meus agradecimentos ao grupo, a Elizete, Elenilda e Paulinho, que foi por muitos anos mestre da percussão, com quem aprendi muito. Adupé (agradecimento na religião de matriz africana) ao grupo. Hoje, como membro da diretoria, busco potencializar e manter o espaço aberto, firme e forte, cumprindo com sua missão”, comenta Fábio de Santana.
Durante a entrevista, Fábio foi perguntado se algum amigo de sua geração teve a vida ceifada? Ele respondeu que não, que todos tinham sido resgatados pela arte. “Graças a Oxalá, todos da minha geração estão vivos e seguindo suas carreiras, seja na área artística ou não, todos estão vivos e bem”, finalizou Fábio de Santana.