Imagino que seja de conhecimento de todas e de todos que as cotas raciais já estão completando quase duas décadas de experiências. Isso faz com que tenhamos, muito em breve, que fazer um balanço político e intelectual para continuar a avançar. É importante advertir à leitora e ao leitor que, ao falarmos de cotas, estamos tratando a respeito da política pública (quiçá um dia será uma política ampla) que garante acesso à continuidade da escolarização à população negra, especialmente a graduação e a pós-graduação.
Na atualidade, há uma série de outras nomeações para as cotas. “Políticas de ações afirmativas” é o conceito que mais teve aderência. Sinceramente, não reuno elementos para avaliar qual deles melhor representam politicamente essa importante conquista, mas opto por “cotas” porque vejo minhas irmãs pretas e meus irmãos pretos sempre falando disso e o quanto essa palavra causa incômodo.
Em 2017, aprovamos (faço parte dos discentes) as cotas na Pós-Graduação da Escola de Serviço Social da UFRJ. Foram dois longos anos de assíduos debates. Sempre que falávamos em “cotas”, alguém se mexia na cadeira, torcia o nariz ou fazia algo que sinalizasse se tratar de um assunto com pouca receptividade. Foi nesse momento que entendi o quanto qualquer tema sobre a questão racial sempre será desconfortável e que, por vezes, nosso papel é justamente esse: tirar todos da zona do conforto para que se possa refletir sobre questões tão imprescindíveis.
Percebo também que, por mais que os brancos (cuja presença na academia é majoritária) não tenham domínio do assunto, sempre vão se dispor a discorrer a respeito. Em geral, vão tentar desconstruir as elaborações de pensadoras e pensadores negros, dizendo haver equívocos, ou vão distorcê-las para que se perca o debate de origem.
A desconstrução surge da invalidação sobre o nosso acúmulo teórico, isto é, afirmando posições contrárias com pseudoteorias de brancos racistas. Um exemplo é dizerem que não podemos abrir tantas vagas porque “está comprovado” que “esse público” tem muitas dificuldades para permanecer nesses espaços. Realmente, temos essas dificuldades. A principal delas tem a ver com a falta de política de assistência estudantil, mas eles nunca se referem a isso, tendo como objetivo apenas nos imbecilizar.
Quanto às distorções, são inúmeros os recursos, mas o que nos deixa pasmos é aquele que diz não concordar com o termo “cotas para negrxs”, pois há outros segmentos de estudantes nessa instituição que ficarão excluídos. Ninguém é contra as cotas, mas quase nos chamam de burros. Ninguém é contra as cotas, mas, por causa da população negra, os brancos pobres agora não terão acesso à universidade. E eis que o racismo se manifesta descaradamente, pois, no final das contas, ninguém queria as cotas, pois todas as dificuldades do alunado aparecem só quando a população negra consegue ter um avanço.
No que toca ao balanço político, não é preciso ser um ou uma especialista no assunto. Basta atentar para a quantidade de movimentos, organizações e grupos organizados pelos e para as e os negrxs. São grupos de estudos nas universidades, de ensino em línguas estrangeiras, de teatro etc. Quanto ao balanço intelectual, percebemos a quantidade de espaços de reflexão, debates e escritas sobre temas que interessam diretamente à população negra: as cotas, a solidão da mulher negra, do genocídio da juventude negra e favelada etc.
Após o processo seletivo da pós-graduação da referida instituição, notamos a quantidade de pretas e pretos ingressantes, e de que maneira fazer parte do sistema de cotas incentiva a participação desse segmento da população. Pode parecer simbólico, mas não é. É necessário perceber que é possível estar naquele lugar disputando com quem sempre esteve ali e que não queria que lá estivessémos. Entendamos: não é simbologia, é política de acesso à universidade, por isso não pode ser retirada, devendo ser universalizada.
Ao longo das discussões para implementar as cotas, nós discentes reivindicamos que a nota de corte dos cotistas fosse 5 e que a da ampla concorrência fosse 7. Assim ficou. Por inúmeros motivos, essa nota é determinante. Certo dia, ouvi que isso faria com que futuramente fossemos discriminados pelos demais alunos, que isso rebaixaria nossa pauta. Sempre respondo da seguinte maneira: somos discriminados pelo racismo desde o nascimento, quando nossas mães pretas recebem menos anestesia do que a mulher branca e, enquanto o racismo continuar velado, como é perceptível na sua fala, sofreremos racismo. A diferença é que agora serei discriminada, mas serei mestre, doutora, PhD, promotora e, quiçá, juiza para julgar os preconceituosos.
Portanto, caro racista, seu tempo está acabando. Sua zona de conforto vai se encerrar, porque estamos construindo outras pontes para o nosso futuro. Consequentemente, a nossa reparação econômica e social fará com que se entenda e perceba o quanto existe de privilégio às custas de quem edificou esse país – e que, por isso, hoje precisa de cotas. Encerro com uma indagação de autor desconhecido: “xs negrxs compõem 54% da população brasileira – logo, são a maioria. Mas as cotas não são para minoria?”. Por conseguinte, há algum tipo de inversão e perversão nisso, pois, como é possível que uma maioria de uma dada nação não tenha acesso a educação (e outras políticas públicas)? Quem tem sido privilegiado nisso? Estamos atentos a tudo e, em breve, estaremos em todos os espaços de poder disputando narrativas, produção de conhecimento, vagas e retomando o que já deveria ser nosso.
Que em 2018 enegreçamos tudo!