Um artigo assinado pelo presidente estadual do PT-RJ, Washington Siqueira, o Quaquá, intitulado Por um partido lulista, burguês e reformista, que foi publicado na página do partido no Facebook, causou alvoroço nas redes entre militantes de esquerda. Reações indignadas, algumas furiosas, de petistas, ex-petistas, psolistas e etceteras. O título é provocador, como o próprio autor afirma, e provoca estranhamento à primeira vista. Mas o artigo não se resume ao título, e a polêmica não se esgota nele. Tendo lido atentamente, não só o texto, como também as opiniões de muitos que reagiram, convido para um diálogo um pouco menos apaixonado e mais analítico sobre o seu conteúdo.
O primeiro equívoco dos que reagiram é próprio da época em que vivemos, mais afeita aos memes e aos 140 caracteres do que a uma leitura mais aprofundada. Grande parte das reações furiosas e indignadas julgavam que o partido “lulista, burguês e reformista” a que Quaquá se refere seria o PT. E não, Quaquá, não está propondo que este partido seja o PT (se o PT, no últimos anos, assumiu ou não essas características, aí é um outro – e bom – debate). O que ele propõe é que, sob a liderança de Lula, se crie um novo partido de centro no Brasil. Ou, em suas próprias palavras, “devíamos operar seriamente a organização de uma nova agremiação, que talvez nasça maior até que o PT, e que seja a base das alianças com o establishment político burguês (…). O presidente Lula deveria organizar diretamente um partido burguês para chamar de seu.
A proposta, ousada e polêmica, tem lastro na história do Brasil. Getúlio Vargas, líder do então Partido Trabalhista Brasileiro (que, fora o nome, nada tem a ver com o PTB atual), operou a criação do PSD, que reuniu setores da oligarquia ao centro e à direita, que o apoiavam, para contrapor-se ao golpismo direitista da UDN e criar uma coalizão que lhe garantisse a governabilidade. Tancredo Neves, que foi ministro de Getúlio e personagem-chave de seu governo entre 1950 e 1954, era um dos líderes do PSD. Sem este apoio, Getúlio não teria sido eleito, nem empossado, tampouco conseguido avançar em conquistas importantes como o monopólio estatal do petróleo e a garantia de direitos trabalhistas.
Uma das verdades incômodas do texto de Quaquá é nos fazer atentar para o fato de que, no Brasil, uma candidatura de esquerda puro-sangue pode fazer uma campanha bonita, apaixonante, mas não ganha uma eleição presidencial. A vida é dura – não como gostaríamos que ela fosse. Eleição presidencial não é disputa de centro acadêmico. Para governar, é preciso construir alianças, tecer pontes e diálogos com outros setores da sociedade, para além da esquerda e dos movimentos sociais de base popular. Setores da esquerda consideram que a necessária autocrítica que deve ser feita sobre os governos Lula e Dilma resume-se a execrar a política de alianças realizada no período, propondo uma “guinada à esquerda”. Mas será que, num contexto de grave retrocesso, ameaças à democracia e crise institucional que vivemos, tal inflexão é possível?
Outra afirmação que incomodou bastante é quando Quaquá diz que “Lula é maior do que o PT e a esquerda”. As cenas épicas e emocionantes do povo nordestino recebendo a caravana do ex-presidente nas últimas semanas demonstram que, de fato, Luiz Inácio Lula da Silva talvez seja hoje o único líder de massas vivo no Brasil, e talvez no mundo. O lulismo é um fenômeno social para muito além do PT e da esquerda, embora tenha origem nela. Se este fenômeno é capaz de ir além do personagem histórico Lula, aí é outro problema. O peronismo na Argentina, que guarda características semelhantes ao lulismo, existiu apesar de Perón, tendo sido capaz até mesmo de lhe confrontar em vida e de se reinventar em novas lideranças e frentes políticas depois de sua morte. Mas o fato é que Lula está aí, vivo e forte, então, não há como falar de lulismo sem Lula no momento.
Lula é o melhor que temos para hoje no Brasil, como liderança de massas e como candidato, se o deixarem chegar até lá. No entanto, o desafio de construir uma frente ampla que reúna o conjunto da esquerda, novos movimentos sociais, setores independentes e não identificados com os partidos atuais, está posto. Mas para ser frente, e para ser ampla, não cabe hegemonismo de uma agremiação partidária por sobre outras organizações. Lula é PT e sempre será. Mas a constituição de um novo polo aglutinador das forças populares e democráticas no Brasil terá dificuldade de se conformar se o PT for sempre o primeiro da fila, ou, nas palavras de Quaquá, “o partido líder de uma ampla coalizão de partidos de esquerda, movimentos sociais e personalidades”. No Uruguai, um dos critérios para a governabilidade interna da Frente Ampla, que caminha para completar 16 anos no comando do país, é que nenhuma força política isoladamente pode ter mais de 30% dos candidatos ou dos postos de direção partidária. O PT topa este desafio? Seria um bom começo de conversa.