De passagem pela Argentina, percebi grande preocupação em relação ao Brasil, e com o novo cenário que se descortina após a vitória de Bolsonaro. É uma mexida drástica e profunda no xadrez politico da região, acentuada pelos ecos de “bolsonarismo” que pipocam aqui e ali, na Argentina e em outros países do continente.
Fala-se da situação do Brasil e de Bolsonaro nos cafés, nos bares, na TV, no táxi, nos jornais. Há, como em nosso país, incerteza e medo, além de uma indisfarçável consternação dos mais próximos com a nossa situação. Amigos desejaram-me pêsames. Nos círculos acadêmicos, políticos e culturais, há expectativas sobre um eventual êxodo de brasileiros, caso se confirmem as ameaças de prisão ou exílio de opositores. Não houve, até o momento, um desmentido ou recuo sobre o teor destas declarações, por parte do futuro presidente do Brasil.
Lendo jornais de diferentes orientações políticas – sim, porque na Argentina há jornais diários, nas bancas, com opiniões (muito) diferentes entre si. Dos peronistas do “Página 12” aos oligarcas do “El Clarín”, o tom geral é pessimista e preocupado. Seja pelas consequências da guinada à extrema-direita e seus reflexos na região, seja pelas primeiras declarações nada animadoras do anunciado superministro de economia Paulo Guedes, afirmando que a parceria econômica e comercial do Brasil com a Argentina e o Mercosul não estarão entre as prioridades do futuro governo.
As análises e artigos sobre “el efecto Bolsonaro” são muitas, profundas, complexas. Na comparação entre o que se vende e se lê nas bancas daqui e de lá, em diversidade e conteúdo , nossa imprensa nacional está perdendo de 7 a 1 para a dos hermanos. . Mesmo sob inúmeras ameaças à liberdade de opinião por parte do novo regime, a grande imprensa brasileira relativiza as consequências da vitória de Bolsonaro e seus efeitos nefastos que já vão além do que será, ou não, o seu futuro governo.
Bolsonaro marca, na história recente da América do Sul, não só o fim do ciclo de governos progressistas das primeiras 2 décadas do século XXI, como coloca em xeque o próprio liberalismo político que esteve na base dos pactos de redemocratização pós-ditaduras militares, especialmente nos países do cone sul.
Bolsonaro também reabre feridas que estão ainda longe de cicatrizar, em questões relacionadas ao direito à memória, verdade e justiça para os crimes cometidos pelo Estado nas ditaduras militares em Argentina, Chile, Paraguai, Uruguai e Bolívia, apenas para falar dos países que estiveram no raio de ação do “Plan Condor”, ação militar regional coordenada pelo serviço secreto norte americano.
A agenda econômica esboçada até agora pelo novo regime brasileiro pouco difere, em suas previsíveis consequências, do receituário ultraliberal adotado pelo governo Macri, que conduziu a Argentina à bancarrota. O país está, neste momento, sob intervenção do famigerado FMI. O Fundo andava há alguns anos sem ter o que fazer no Brasil, mas tudo indica que será chamado de volta em breve….
Sobre possíveis impactos da virada política brasileira nas eleições presidenciais argentinas em 2019, analistas de diferentes espectros ideológicos coincidem em afirmar que não há um personagem como Bolsonaro com capacidade de polarizar uma eleição presidencial no país. Tampouco, haveria espaço na sociedade argentina para a formação de uma maioria política e eleitoral em torno de tendências notoriamente autoritárias e antidemocráticas, ou de uma agenda tão regressiva em aspectos culturais e comportamentais.
Cabe observar, porém, que analistas brasileiros também diziam o mesmo há 1 ano atrás: o quão improvável seria uma vitoria de Bolsonaro. E, se de fato não há, até o momento, um candidato a Bolsonaro na Argentina, os sintomas de “Bolsonarismo” no cenário político local são crescentes: a ministra da Segurança pública do governo Macri defendendo a liberação do porte de armas; aumento da repressão aos movimentos sociais e políticas de “mano dura” para os imigrantes; ascensão de igrejas evangélicas neopentecostais como atores políticos de influência crescente; sentimento antipolítica provocado pela sensação de corrupção generalizada insuflada pela mídia; lawfare e ativismo judicial seletivo contra ex-governantes.
“La historia de los gorilas se terminó”, cantam orgulhosos nas ruas os militantes da La Cámpora, organização de juventude peronista argentina. E de fato, este país teve a coragem, nos governos Kirchner, de enfrentar – e vencer – os fantasmas do passado, em um acerto de contas institucional com os crimes cometidos pela ditadura militar, levando a julgamento, condenando e punindo os criminosos, transformando os centros de detenção e tortura em espaços públicos abertos às escolas, onde funcionam centros de cultura, lazer, pesquisa e documentação.
Enfrentar os fantasmas do passado será fundamental para a resistência democrática, que disputará, palmo a palmo, daqui pra frente os rumos do Brasil, bem como sua relação com a América Latina e o mundo. “Nem os mortos estarão em segurança se o inimigo vencer”, nos alertou Walter Benjamin em seu célebre ensaio sobre o conceito de história. É preciso voltar dizer em alto e bom som, e em português, que a história dos gorilas já terminou!