Eu estava presente na manifestação Brasil Outros 500, em Porto Seguro (BA). Em 22 de abril de 2000, data do aniversário de 500 anos do “descobrimento” do Brasil, este movimento reuniu numa grande conferência mais de 2.000 índios de 200 diferentes etnias.
Naquele tempo, eu era um adolescente militante-tarefeiro, o típico faz-tudo dos movimentos. Nunca almejei cargos justamente porque queria estar sempre livre. Meu aprendizado sobre a história do Brasil se deu na prática: no protesto contra os festejos dos 500 anos de colonização portuguesa. Indígenas, junto com representantes de movimentos, sindicatos, pastorais e inúmeros militantes independentes – assim como eu – se aventuraram em uma viagem pelo tempo a fim de retomar a luta principal diante do primeiro dos males do Brasil: a colonização.
Chegando a Porto Seguro, a cidade estava sitiada. Ao entrar no Estado da Bahia, eram constantes as barreiras policiais e a fiscalização nos ônibus vindos de todos os cantos do país para apoiar a resistência indígena. O lugar onde estávamos acampados há dias era chamado de Quilombo. Todas as tendências da extrema esquerda se encontravam num raro momento, que não foi fotografado, apenas gravado na memória da luta popular brasileira.
No segundo dia, a manifestação saiu do acampamento ao coro do hino “A Internacional Socialista”, que une toda a esquerda mundial. Anarquistas, comunistas, movimento negro e etnias indígenas marcharam pela avenida que, na cidade de Santa Cruz Cabrália, separa a Praia Coroa Vermelha dos hotéis de luxo em meio a reservas indígenas invadidas por centenas de anos de especulação imobiliária. O objetivo da marcha era de impedir a celebração da cerimônia católica, com um representando do Vaticano, um grau abaixo do Papa, que celebrava os 500 anos de catolicismo no Brasil e seus festejos.
Logo às 8h da manhã, chegou a repressão da Policia Militar do Estado da Bahia. O governador local e o presidente do país atendiam por siglas: ACM e FHC, respectivamente. Aquele era um dos piores momentos do Brasil, com o desenrolar de privatizações de empresas públicas fundamentais, tais quais mineradoras, telefonia, ônibus, trem, estradas. A farra do empresariado era total, afinal, basta um liberal estar no poder por uma hora para que ele tente vender uma empresa pública.
Meia hora depois eu já estava detido junto com todas as mais importantes lideranças das esquerda no Brasil. A repressão tornou possível o relacionamento entre figuras que tempos depois formariam novos grupos pelo país. Indígenas armados de borduna escreviam os nomes dos deputados e senadores e juravam suas mortes. Eu estava lá, preso, na chuva, longe de casa, sentindo a fúria revolucionária pulsar dentro de mim.
Quando chegaram as viaturas para levar os detidos, todas as televisões do mundo mostravam os fatos ao vivo. A atitude era oposta a dos canais de TV nacionais, que a todo custo, tentou minimizar a ação nos noticiários. Todos os detidos acabaram levados em ônibus para delegacia de Santa Cruz Cabrália, a alguns quilômetros do ato. Temi a prisão em outro Estado: longe de conhecidos, sem grana, já com fome, acampado há dias, como se vivesse uma guerra. Mas tudo acabou bem. A delegacia estava fechada. Não havia expediente nos fins de semana. Então, fomos todos liberados.
Depois de horas caminhando de volta a Coroa Vermelha, fomos abordados por militares e colocados em ônibus de viagem com destino ao Rio de Janeiro, sem paradas. Ou seja, fomos expulsos da Bahia pelo governo de Antonio Carlos Magalhães.
Tentei fugir pela praia antes da confusão começar e me deparei com a cruz de madeira onde o padre José de Anchieta rezou a primeira missa. Eu me ajoelhei e ali mesmo jurei lutar pelo sangue derramado das inúmeras pessoas subjulgadas, escravizadas e assassinadas neste país. Depois desse dia, resolvi me assumir como um homem negro e estar pronto para apoiar as resistências populares, seja através das marchas, dos panfletos, da poesia ou simplesmente contando história.
Todo o poder para o povo! Viva a resistência indígena, negra e popular!