Voluntária com criança afegãs nos braços
Acampamento de afegãos no Aeroporto de Guarulhos. Eles começaram a chegar em 2021. FOTO: Mariana Vilela/ANF

Os olhos de V.A, costureira, revelam o cansaço e a ansiedade. Já são oito dias acampada junto a mais de cem pessoas afegãs no Aeroporto de Guarulhos. Alguns estão há mais de dois meses no local.

As barracas são improvisadas com lençóis e cobertores doados, além de colchonetes para acomodar crianças, mulheres e homens, que vivem dias de desespero e incerteza.

“A situação é muito triste”, conta Aisha Marcella, voluntária brasileira que se converteu ao islamismo há dois anos e vem dedicando parte do seu tempo para auxiliar os afegãos desde que começaram a vir para o Brasil, a partir de outubro de 2021.

“O Talibã está voltando a liderar o país e impor seu modo de viver e pensar, aniquilando as manifestações que não se alinhem aos seus ideias. O resultado são mortes, ameaças, invasão, numa situação insustentável para muitos deles”, conta a voluntária, que se desdobra junto a outros para deixar a situação dos refugiados mais amena.

Quem ajuda se esforça em manter o básico para a vida dos afegãos no Aeroporto: parcerias com hotéis para que possam tomar banho; pedidos de doações diversas, especialmente comida junto à prefeitura e outras entidades; além de proporcionar um pouco de alegria.

“Fazemos piqueniques coletivos, festas de aniversário e outras comemorações. Celebramos o dia das mães e tentamos entreter as crianças”, continua Marcella, com um sorriso permanente no rosto permanente.

Voluntária com criança afegã no aeroporto de Guarulhos, onde estão provisoriamente. FOTO: Mariana Vilela/ANF

Imigrantes que querem investir têm mais facilidade

Grande parte de quem chega ao Brasil tinha estabilidade, moradia e uma boa condição de vida em seu país de origem. Mas a volta do Talibã ao poder os obrigou a venderem suas casas e pertences, saindo à procura de refúgio em outros países, como o Brasil. “Alguns pretendem construir suas vidas aqui, outros pensam em ir para outros países, principalmente para os Estados Unidos”, diz Marcella.

Para ela e outras mulheres afegãs que conversaram comigo, o Brasil é um país hospitaleiro para imigrantes, com grande parte das pessoas amáveis e receptivas. Inclusive, é um dos poucos países que concedem visto humanitário aos afegãos na atual situação. Mas para outras instituições, voluntários e alguns imigrantes, o acolhimento vai até a página dois.

“Existe uma abertura muito mais fácil para imigrantes que queiram investir. O Brasil é acolhedor até certo ponto, para certas nacionalidades o Brasil é bem acolhedor, mas não para outras, como países da África e América Latina”, diz Ana Paula, que resolveu trabalhar com imigrantes de forma voluntária por considerá-los um público extremamente vulnerável.

“Eles chegam em um país novo, com uma língua nova, tendo que construir tudo do zero. Fui tentando trabalhar muitas vezes como voluntária em áreas desse tipo. E aí, no ano passado, acabei conhecendo a situação dos afegãos. Em 2021, um rapaz pediu ajuda num grupo de WhatsApp para preencher o visto humanitário. Vi que tinha gente pedindo dinheiro para o visto e eu acabei tendo que desmistificar isso, explicando que o processo do visto humanitário é gratuito”, relembra.

Afegãos, venezuelanos e angolanos tentam a sorte em São Paulo

Junto com venezuelanos e angolanos, o Afeganistão tem sido o lugar de origem de pessoas que o Brasil mais tem recebido, principalmente em São Paulo.

A opinião de Ana Paula a respeito do “meio-acolhimento” do Brasil é compactuada por Jean Katumba, diretor da Associação Pacto pelo Direito de Migrar, que tem como finalidade promover a integração local dos imigrantes, buscar o protagonismo e incentivar a integração dessas pessoas.  

Jean está há dez anos no Brasil e sentiu na pele as dificuldades de ser imigrante. Formado em engenharia em seu país, trabalhou como faxineiro na primeira fase em que esteve no Brasil.

“Meu primeiro desafio foi enfrentar o preconceito. Esse é o grande desafio do imigrante. Nada de falar que o Brasil é um país preconceituoso, mas no período em que a gente chegou, a pessoa nos via na rua e falava ‘eles estão fugindo da fome na África‘. E eu me pergunto: será que no Brasil não tem fome? Tem. É uma visão distorcida de quem é o imigrante. É uma barreira que a gente não consegue quebrar”, conta Jean. 

Ele continua. “O Brasil é renomado como país acolhedor, mas não é. Pergunta para os africanos que chegam hoje. Quando essas pessoas chegam, querem morar e trabalhar, mas a realidade é outra. E o Brasil está perdendo com essa política. Porque o imigrante vem pra cá e pode ser um membro funcional da sociedade, mas o que tem acontecido é que ele pede para voltar para suas casas ou ir para outro país. No final, todos saem perdendo”. 

Jean Katumba, diretor da PMig, atende imigrantes na sede da ONG. FOTO: Mariana Vilela/ANF

Brasil, país de passagem

Jean acrescenta que o Brasil é um país de passagem, e não um país estabelecido para imigrantes. “Por que o Brasil não acolhe ainda, ele recebe. Tem a diferença entre acolher e receber. Receber é cumprir, abrir porta e deixar a pessoa entrar. Acolher é ver e pensar: onde que esses imigrantes vão ficar? Qual o trabalho que eles vão fazer?“.

O congolês Yves Monsenhor é um dos imigrantes africanos que tentou ficar no Brasil por cinco anos, mas não teve oportunidade para continuar. Formado em direito em seu país, ele e alguns membros da sua família foram obrigados a emigrarem em 2017. Mas no final do ano passado, Yves saiu do Brasil para o Canadá em busca de melhores condições de vida.

“Para mim, o Brasil foi bom até chegar a pandemia. Fiz uma boa integração, com algumas formações culturais, encontrei pessoas que me ajudaram a falar a língua, a encontrar trabalho. E trabalhei em áreas diversas”, diz.

Mas depois que passou a pandemia, sentiu dificuldade de trabalhar e estudar. “Aqui no Canadá existem pessoas que auxiliam no processo de integração tanto quanto no Brasil. Mas a integração total acontece de forma mais rápida. Aqui, já fiz algumas formações e estou trabalhando na área da saúde, como acompanhante de pessoas com dificuldades motoras ou de locomoção”, conta. 

A luta da ONG Pacto pelo Direito de Migrar, assim como diversas outras instituições, em sua grande maioria, é facilitar o acesso à documentação e atuar como uma espécie de interlocutor para outros acessos, como educação, moradia e saúde, principalmente nos primeiros meses do imigrante.

Legislação é progressista, mas política é defasada

Jean explica que o Brasil possui uma legislação muito atual e progressista de imigração, mas nem sempre ela é aplicada. Ele afirma que a nova lei de imigração sancionada no período do governo Michel Temer foi uma grande conquista da sociedade civil, mas ainda é pouco para que imigrantes se sintam integrados.

Ele conta que em alguns países o imigrante recebe um valor pelo refúgio, ou seja, o país paga para recebê-los, o que não é o caso do Brasil.

Centro de Atendimento e Referência para Imigrantes. FOTO: Mariana Vilela/ANF

Thamara Thomé, coordenadora do Crai, um órgão da secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, também frisa a importância da criação de uma política de unidade nacional para a imigração.

Ela afirma que a pandemia escancarou as grandes falhas dessas políticas, a questão do auxílio emergencial, o acesso à saude, além do fato de que muitos imigrantes foram tirados do trabalho

“Em termos de legislação, o Brasil é bastante progressista, pois existem países com políticas muito restritivas. Ele recebe as pessoas. Mas, na prática, a situação é outra”. 

Por se tratar de lei recente, Thamara acredita que o atual governo possa ampliar os acessos. “Estão sendo feitos grupos de trabalho e estamos atuando nessa discussão de se criar uma política geral de imigração”. Segundo ela, falta um trabalho de unidade, de sincronização de dados e atuação conjunta. 

Imigrantes aguardam atendimento na ONG PMIG África do Coração. FOTO: Mariana Vilela/ANF

Racismo e xenofobia ainda estão presentes

Tamara conta que no Crai, 75 % a 80% das pessoas que passam se declaram negras ou pardas, ou seja, há predominância de origem do sul global: América Latina, África e Caribe. Há também países do leste europeu e sudeste asiático.

“É uma imigração maior de sul a sul. Não de uma maneira explícita, mas de uma maneira implicita, muitas pessoas discorrem sobre situações de preconceito, acontecimentos no dia a dia tanto em relação à xenofobia, quanto ao racismo. E percebemos também em relação às pessoas brancas que frequentam aqui, o quanto o vínculo e a tratativa é diferente”. 

Para combater essas exclusões promovendo trabalho e renda, a ONG Adus foi idealizada em outubro de 2010. Marcelo Haydu, atual presidente, conta que a Associação atua como meio de campo para conseguir o acesso a escolas públicas para filhos de imigrantes. Também atua junto a órgãos da prefeitura para que conseguir vagas em albergues.

Há um programa é o ensino de português, com aulas presenciais e online. Também atuam para sensibilizar gestores de RH de empresas no sentido de erradicar o preconceito e estereótipos contra imigrantes.

“Muitas empresas chegam com questionamentos e preocupações sobre quais são as garantia que terão ao contratar pessoas africanas. Muitas acham que podem estar contratando traficantes ou terroristas. O que dissemos é que em todos os anos de nossa existência, nunca tivemos nenhum caso. São ideias e estereótipos equivocados que é preciso desmistificar”, continua.  

Em nome de uma possibilidade de intercâmbio e geração de renda, a Adus criou um negócio social, a escola de idiomas chamada Nós, o Mundo, promovendo cursos de espanhol e francês com professores refugiados. Dessa maneira, há um intercâmbio cultural e geração de renda aos imigrantes. 

Refugiados na música

Carlinhos Antunes, músico e historiador, comanda a orquestra Mundana Refugi, que reúne músicos de todas as partes do mundo. 

A semente deste projeto começou nos anos 60, quando, inconscientemente, ele guardou a memória de quando morava em uma casa em Perdizes, bairro da capital paulista, e conviveu com pessoas de várias partes do mundo.

“Na minha rua tinha chinês, japonês, latinos, tinha pessoas nordestinas, afrodescendentes, judeus, libaneses, alemãs fugidos da guerra, italianos. Só depois eu me dei conta do quanto tudo isso foi importante para mim”.

Depois de muitas viagens que fez para compreender raízes musicais, como a música árabe, tendo morado no Marrocos e na Europa, Carlinhos voltou com um projeto chamado São Paulo de Todos os Povos, tendo a música brasileira como elo de ligação com outras músicas do mundo. A partir de então, nunca mais parou de conectar pessoas musicalmente.

Nos anos 2000, foi formada a Orquestra Mundana, com músicos de todo o mundo, e em 2017, passou a ser chamada Orquestra Mundana Refugi, com a inclusão de imigrantes e refugiados.

“Sentia que São Paulo, apesar de abrigar toda essa diversidade de povos, não integrava. Eram povos que não se comunicavam”. Através da música, a orquestra Mundana Refugi é referência da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) e dos próprios imigrantes como exemplo de integração entre povos com diferentes culturas. 

A Orquestra Mundana Refugi, na sua formação atual, reúne músicos da Guiné-Conacri, do Congo, além de artistas de Cuba, Irã, Venezuela, Palestina-Síria, Tunísia e França, tendo Carlinhos como diretor musical.

“A gente canta em 16 línguas e temos 12 nacionalidades diferentes“, comemora. 

Orquestra Mundana Refugi é referência para a ACNUR e reúne imigrantes do mundo inteiro. FOTO: Divulgação