As favelas são lugares que, na maioria das vezes, aparecem nos principais meios de comunicação como locais que só tem violência, crime, medo e outras coisas ruins. Essa é uma construção completamente errada, mas infelizmente consolidada na nossa sociedade. Entretanto, quem está lá dentro, sabe realmente o que acontece. Sem negar as coisas ruins, mas as favelas também são moradia de pessoas batalhadoras e que lutam a cada dia para sobreviver e dar uma vida digna às suas famílias.
Assim, existem muitas pessoas que não só sabem disso, mas também tentam mostrar para o “mundo exterior” o que de fato vem dali, o lado bom e positivo, palavras e imagens bonitas, como de qualquer cartão postal da cidade. Nesse trabalho, não temos como deixar de falar de Bruno Itan. O fotógrafo, morador do Complexo do Alemão, e um apaixonado por retratar o cotidiano das favelas cariocas, tem um enorme acervo de imagens, disponibilizado principalmente nas suas redes sociais. Você pode acompanhá-lo no Instagram, no perfil @brunoitan.
Bruno tem 30 anos e é nascido no Recife. O pernambucano veio para o Rio de Janeiro com 10 anos de idade, junto da família, e desde então mora no Alemão. Ele ainda tem muita ligação com a sua cidade de origem, e já voltou lá algumas vezes, para visitar a parte da família que ainda mora lá, incluindo a mãe.
Em 10 anos de carreira, Bruno tem vasta experiência, e já viajou o Brasil e o mundo com suas exposições de fotos. Trabalhou com o governo e programas de televisão, e é uma referência no seu ramo.
Um episódio que o destacou muito esse ano foi quando ele registrou o menino Wallace Rocha, morador da Vila Cruzeiro, durante a Copa do Mundo, assistindo um jogo do Brasil com uma camisa amarela e o nome e número do jogador Philippe Coutinho escritos à mão. A foto teve enorme repercussão e chegou até Philippe, que depois se encontrou com o menino e lhe presenteou com várias coisas.
Bruno também trabalha no projeto “Olhar Complexo”, no qual ele ajuda a ensinar para às crianças mais humildes sobre o mundo da fotografia, e as introduz ao seu trabalho, para tentar tirá-las do mundo do crime e oferecer alternativas de vida.
Fomos então ao Complexo do Alemão entrevistar o seu fotógrafo mais ilustre. Foi uma conversa muito legal. Bruno é um cara com muita representatividade por lá, e isso ficou bem claro com a nossa entrevista sendo “interrompida” várias vezes pelas pessoas da comunidade que vinham cumprimentá-lo.
ANF – Você tem alguma formação acadêmica, de faculdade?
Bruno: Não tenho, e isso é engraçado, porque eu palestro em várias universidades, mas ao mesmo tempo, nunca fui formado. Mas parece que isso serve de um bom exemplo, de uma pessoa que, mesmo sem ter estudo e o apoio que seria necessário, vai sobrevivendo. Aqui onde nós moramos, a gente não vive, mas sobrevive. E, mesmo com essas dificuldades todas, não procurei um caminho diferente, nem entrei na vida do crime, do tráfico, nem nada. Entrei num curso de fotografia, e me tornei fotógrafo.
ANF – Qual a verdadeira importância de um diploma? Você acha que é mais importante fazer um trabalho legal, mostrar para as pessoas certas, e assim se desenvolver?
Bruno: Diploma é muito bom, abre algumas portas, e muitas vezes você precisa dele para entrar nelas. Mas na minha vida, foi algo de Deus. Fiz uma exposição, e no dia apareceu a presidenta Dilma. Ela viu, gostou, e me ofereceu um emprego no governo. Trabalhei no Palácio Guanabara, como fotógrafo oficial do governador, entre 2011 e 2016. Depois disso, fui fazer exposição na Alemanha, em vários lugares do Rio de Janeiro, na Central do Brasil, e mesmo assim não precisei mostrar nenhum diploma. Fotografia é muito sobre o olhar de cada um que faz a diferença. O estudo é sempre bom, mas tem muita gente que tem diploma e está sem emprego. Se você não persistir e correr atrás, acaba desistindo e seguindo outro rumo. Na minha área, é importante ter cursos, mas fotografia você só aprende na pratica, indo para a rua, saindo da teoria.
ANF – Qual a sua história de experiência no fotojornalismo?
Bruno: Começou de verdade em 2010, na megaoperação aqui no Complexo do Alemão, quando eu tinha acabado de fazer meu curso, e estava naquela ansiedade de fotografar tudo. Eu sempre gostei disso, comecei a tirar foto no meio da rua, as pessoas passavam e me chamavam de maluco, mas eu nunca liguei muito para críticas que não eram construtivas. A fotografia dentro de favela às vezes é mal vista, porque as pessoas pensam que você está com uma câmera para mostrar tráfico. Todo mundo já sabe que tem isso, então vou tentar mostrar o pôr do sol, crianças jogando bola, soltando pipa, afinal ninguém mostra isso. Assim, na megaoperação, eu tava dentro da favela, e os jornalistas do lado de fora, porque os policiais e o exército não deixavam ninguém entrar. Como eu tava lá, decidi sair de casa e ir pra rua tirar foto. Em uma dessas vezes, tirei fotos de policiais fazendo besteira, entrando na casa de morador, roubando coisas. Aí um policial me parou, no meio do caminho e me mandou apagar tudo. Consegui recuperar algumas fotos apenas, com ajuda de jornalistas, mas a maioria se perdeu. Aquela adrenalina fez começar minha paixão pela fotografia, de tirar foto no meio da guerra, e ao mesmo tempo, ser um olhar do morador, diferente do jornalista, que vem para cá com o olhar crítico da mídia. Jornalistas fazem a mesma operação que eu, mas as fotos têm diferenciais.
ANF – Em relação ao equipamento, existe ou existiu dificuldade para conseguir?
Bruno: O professor do meu curso me falou que eu tinha um olhar muito bom, e que eu devia arrumar uma câmera. Trabalhei com ele, fazendo assistência de fotografia, mas usando o seu equipamento. Depois do curso, eu precisava de uma câmera, para fazer meu nome e meus projetos. Então, arrumei um emprego de lavador de carros num posto de gasolina, na zona sul. Cheguei lá e falei para todo mundo que só queria passar um tempinho, até arrumar o dinheiro para câmera. A princípio, ninguém me levou muito a sério, até me zoavam, mas eu deixava bem claro meu sonho de virar fotógrafo. Com o tempo, as pessoas passaram a me apoiar. Quando eu consegui o dinheiro, realmente me demiti e parti para o meu sonho. Comprei a câmera e comecei a fotografar o que eu sempre quis. Aí eu fiz exposições, comecei a trabalhar no governo, e o Luciano Huck soube da minha história. Ele veio fazer uma reportagem comigo no teleférico. Foi uma surpresa, eu já tinha feita uma matéria com o RJTV uma semana antes, e tinha muito mais gente daquela vez. Depois desse dia, eu comecei a trabalhar em um quadro do programa dele, fotografando casas, e acabei viajando e conhecendo vários lugares do Brasil. No final, ele meu deu uma câmera profissional, que eu uso até hoje. Tudo isso veio através da fotografia, que me abriu as portas, graças a postagens em redes sociais, exposições, palestras, trabalhando de free-lance e vendendo minhas fotos.
ANF – Como é a recepção das pessoas em relação a você e seu trabalho?
Bruno: Hoje em dia, eu sou uma pessoa muito conhecida, graças ao meu trabalho, às redes sociais, e por aparecer na televisão. Também teve a história da camisa do Philippe Coutinho, todo mundo viu e me conhece. Ao contrário de quando eu comecei, quando as pessoas tinham medo da câmera, se sentiam constrangidas, agora, quando eu passo, elas falam comigo, elogiam minhas fotos. Até mesmo com o tráfico eu não tenho problemas, muita gente que anda armada, quando me vê com câmera abaixa a arma e me parabeniza. Eu também tenho o projeto “Olhar Complexo”, todo mundo sabe a minha intenção, de que eu não querer mostrar só o lado ruim. Não quero prejudicar nem a mim nem a minha família, mas quero passar o lado positivo da favela. Me sinto muito bem recebido, todo mundo fala comigo. A polícia ainda me trata mal, às vezes me deixa fotografar, às vezes não, tenho que ter um jogo de cintura, saber os limites, mas ao mesmo tempo “meter a cara” e tentar.
ANF – Como é o trabalho de passar uma visão diferenciada da favela?
Bruno: Se não formos nós de dentro mostrando o lado bom, ninguém vai mostrar. As mazelas existem. Já que a imprensa vai mostrar isso com o contexto dela, eu vou mostrar a mesma coisa com o olhar do morador. Não se trata de querer fazer matéria com o olhar sensacionalista. As pessoas podem ver através do olhar deles, mas também na minha imagem.
ANF – Sobre o projeto Olhar Complexo, qual a importância de mostrar às crianças o trabalho na prática, para eles saírem do mundo do crime?
Bruno: No projeto, elas não aprendem a técnica da fotografia, nem como mexer na máquina, porque até eu demorei para aprender isso. Ali eu quero passar um sentimento de uma arte, de uma cultura, de um caminho que ela pode seguir e saber que tem algo diferente da violência que ela costuma ver diariamente. Ela pode ver alguém segurando um fuzil, mas me vê segurando a câmera também. Crianças memorizam tudo muito facilmente, e esse mundo do audiovisual fica na cabeça. Quando elas crescerem, vão lembrar e querer mexer com isso. Se eu salvar uma delas, já vai valer a pena. Tem muita criança com futuro na fotografia, e a gente incentiva isso.
ANF – Você tem uma forte ligação com o mundo do esporte. Como você a importância dele na vida das pessoas?
Bruno: No esporte, não existe classe social, preto nem branco, alto nem baixo, todo mundo pode competir. Como a fotografia, o esporte ajuda a mudar a vida de muitos. Na história do Philippe Coutinho, tudo aconteceu muito rápido, se espalhou com o poder da rede social, da fotografia aliada com o esporte. Ele (Coutinho) falou que ficou emocionado, e depois se encontrou com o Wallace, deu presentes, realizou o sonho de um menino da favela. E então eu vi como isso é poderoso para mudar vidas.