Estamos em época de desconvidar, esse verbo estranho à convivência, à troca de ideias. Um verbo do glossário na moda, como proibir, vetar, evitar, reprimir, odiar, rechaçar, torturar e matar. A simples recusa a ouvir quem aponta desigualdades sociais, corrupção sistêmica, racismo estruturante e direitos humanos já é grave, por si, mas impedir o debate é ainda mais grave, é obscurantismo.
A jornalista Miriam Leitão e seu marido, o cientista político Sérgio Abranches foram desconvidados a falar na feira literária de Jaraguá do Sul, Santa Catarina, sob o carimbo de serem “de esquerda”. Ora, a colega pode ser muitas coisas, mas esquerdista não é uma delas. No Rio de Janeiro, metrópole dita cosmopolita, a ativista cristã evangélica Fabíola Oliveira e o pastor batista Marco Davi Oliveira, da Nossa Igreja Brasileira, também foram desconvidados a uma conversa com jovens chamados pela Juventude Batista Brasileira para o evento “Despertar 19 – Descolonizando o Olhar: o racismo atinge a igreja?”, dia 19 último, acusados de “socialistas” e “petistas”. Ora, o tema seria o racismo que atinge, sim, não apenas a igreja, mas a sociedade brasileira há séculos.
Tanto na feira literária quanto no Despertar os organizadores foram submetidos a pressão externa através das redes sociais. No Sul, nove em dez eleitores votaram nas últimas eleições no que vivemos hoje; logo, sentem-se no direito de proibir palestras de quem quiserem. No Rio de Janeiro, a pressão veio de Orlando, na Flórida, onde vive um pastor de mãos dadas com o que existe de mais conservador e reacionário na igreja batista de lá, em boa parte responsável pelo conservadorismo religioso e político na América Latina, sobretudo no Brasil. Nos dois casos, os organizadores sentiram-se ameaçados e optaram pelo cancelamento dos convites.
No caso da igreja, que acontece na nossa vizinhança, salta aos olhos a recusa em ver o racismo histórico, ancestral, na mesa de debates, numa iniciativa da juventude batista. Com certeza, os jovens foram forçados a voltar atrás pelos incomodados em sua zona secular de conforto por temas que não entendem e nem admitem. Assim como o cordão de isolamento religioso do governo imposto pelas igrejas da prosperidade, nas tradicionais também persiste o véu sobre “novidades” como discussões sobre direitos reprodutivos, gênero, feminismo e o nem tão novo globalismo.
É uma ampla conjunção de interesses anacrônicos que vêm ditando até o comportamento da diplomacia brasileira nas Nações Unidas. Já há alguns meses votamos com os mais retrógrados contra acordos que reflitam direitos LGBT e feminismo, ao ponto de o Brasil exigir que nos textos oficiais da ONU a expressão “grupos feministas” seja seguida de “grupos religiosos”. Ora, esses religiosos aí inseridos não são outros senão os representados no governo brasileiro, é claro.
Trata-se de um fenômeno mundial, uma ”onda” na qual o Brasil parece uma das forças que mais chamam atenção pelo radicalismo e pela fúria com que investe nos fóruns internacionais. Não por acaso as iniciativas, mesmo que sejam identificadas aqui mesmo, como os cancelamentos de eventos desde a exposição “Queermuseum”, precisam de referência de fora, de preferência dos EUA, a sede do pensamento ultraconservador trumpiano. A este papel se prestam o astrólogo Olavo de Carvalho e o pastor Eduardo Baldaci.
Sequer vivem no Brasil essas pessoas, mas estão vigilantes ao lado de quem defende um Brasil menos “globalista” e mais “soberano”, no sentido de rejeitar ações conjuntas com outras nações e fechar-se em suas fronteiras isolado, reacionário, do contra, mal visto pelos parceiros e vizinhos. Entretanto, há um porém: desconvites e cancelamentos depois de feitos e confirmados os eventos despertam discussão, jogam luz no que está nas sombras, atraem atenções até então alheias à própria realidade. Compete a nós não deixar a luz apagar.