Carlos Chagas e o resgate sanitário da capital do país

O doutor Carlos Chagas, pesquisador do Mal de Chagas - Reprodução

No início de Janeiro de 1918, o até então desconhecido influenza vírus H1N1 modificou profundamente as relações político científicas no país. A Gripe Espanhola ou Gripe de 1918, como ficou conhecida, fez adoecer cerca de 66% da população do Rio de Janeiro. Com rápido período de incubação e alta transmissividade, o vírus se introduziu como um nivelador social, além de reafirmar a autoridade científica e política da medicina conferindo-lhe maior capital social e profissional.

Em meio a esse cenário caótico, era de grande importância social e emocional descobrir o patógeno causador da doença. Naquele momento por pressão nacional em busca de respostas, assumia a frente da Saúde Pública o renomado cientista e infectologista Carlos Chagas, que ironicamente se encontrava também doente. Formado na Escola de Medicina da atual UFRJ, Carlos Chagas colecionou renome ao combater a febre amarela e posteriormente, em um feito inédito até hoje, descreveu sozinho o ciclo infeccioso completo do protozoário Trypanosoma cruzi, a Doença de Chagas.

Com tecnologia limitada à época e sem obter resultados conclusivos, Chagas determinou a política de quarentenas e isolamentos de navios e a notificação compulsória de casos como formas de manter a organização sanitária do país. Tais medidas serviriam para convencer a opinião pública e advertir os setores do estado da importância da aplicação de determinações legais ao combate da epidemia. A partir daí, foi concebida a intervenção estatal na saúde como responsável pela gestão e produção de serviços e políticas de saúde pública.

Porém, a atual pandemia abre a questão sobre como o estado vem intervindo nas políticas destinadas ao “desenvolvimento de uma estrutura social, que assegure a cada indivíduo na sociedade um padrão de vida adequado à manutenção da saúde.” A descoberta de um patógeno causador de doença anula o “direito” de contaminar outros, mas a partir do momento em que o estado se exime de acatar a autoridade científica, este assume o direito de matar.

Com o fim da escravidão causado pela revolução industrial, os ex-escravos se tornaram a raiz da árvore genealógica das atuais favelas e periferias. Sempre deixados à margem de questões de saúde pública, esta população veio a sofrer de diversas epidemias, dentre elas a varíola, febre amarela e peste bubônica. Tais crises, arranhavam o status da capital do país, o que levou a elite política a investir em reformas sanitaristas.

O combate às epidemias e à gripe espanhola posteriormente, renderam alto status a classe médica perante a sociedade, o que fez a elite incorporar a medicina a fim de aumentar sua governabilidade. Os interesses em saúde pública seguem os interesses econômicos do estado para atender as classes altas. A atual epidemia expõe explicitamente que as decisões do estado são baseadas na escolha de quem vive e quem morre.