O ano começa apenas após o carnaval, diz o ditado popular brasileiro. É uma festa incrível de libertinagem, samba e muita cultura. É a explosão cultural de um ano inteiro de trabalho, estudo, mas mais que isso: o Carnaval é um dos maiores eventos políticos do mundo.
Quando uma escola de samba entra na avenida com seus adornos e carros alegóricos, conta parte da história que devemos lembrar e orienta um horizonte. Nós, como cidadãos desse país, temos o dever histórico e moral de valorizar esse evento gigantesco que não homenageia apenas o projeto nacional das elites.
Ele homenageia, principalmente, heróis nacionais, os povos trazidos de África e os originários daqui que continuam resistindo e lutando por Abya Yala (nome do continente americano na língua do povo indígena Kuna).
Indígenas no destaque
Para exemplificar: neste ano, no Rio de Janeiro, nos desfiles das séries Bronze, Prata e do Grupo de Avaliação, a Acadêmicos da Pedra Branca decidiu homenagear a Aldeia Maraká’nà.
Não sei se você, leitor, lembra da tentativa de desocupação em 2013. A mídia convencional até mesmo cobriu, mas sem os atos de violência contra os indígenas que lá ocupam, e que apenas vemos nos documentários do YouTube.
O Cacique Urutau se prendeu por três dias em uma árvore para impedir a ação criminosa e forçada que Sérgio Cabral encomendou ao batalhão de choque do Rio de Janeiro. Os bombeiros, que deveriam prezar por sua vida, retiravam as comidas e bebidas que as pessoas que haviam desocupado a aldeia jogavam.
Porém, nada disso importou ao guerreiro e à sua resistência, que fazia questão de dizer a um dos guardas da Odebrecht: “esse terreno é da União. esse terreno é teu, dos teus filhos”.
Ato sócio-político
Por essas e outras, o ato de exaltar a resistência desse espaço pluriétnico que é o Carnaval, no coração da nossa cidade, e que permite tantas retomadas culturais e ancestrais, é totalmente sócio-político.
É ir contra essa política eugenista e segregacionista que vive-se nesse país. Contra esses atos colonialistas que ainda sustentam os grandes latifúndios para que nós não tenhamos direito ao básico, comida e terra.
Essa politicagem que sustenta a especulação imobiliária desenfreada de diversos prédios residenciais sem nenhuma política pública para o seu entorno, como o Morro da Providência e o Porto Maravilha.
Enquanto incentivam fiscalmente esses prédios, seu entorno vive com falta de saneamento básico e transporte público, além de bastante violência policial.
Carnaval não para violência estatal
Ao citar isso, quero ressaltar que ela não para e nem está restringida ao Estado Fluminense. Na verdade, ela tem alvos bem definidos e nota-se bem pela distribuição pelo Brasil.
Enquanto atinge níveis estrondosos no Nordeste, de maioria preta e indígena, é mais amena no Sul. Antes de começar o desfile no dia 26 de fevereiro, a ressaca do Carnaval, o tiro cruzado corria solto no Morro do Fubá. Nenhum momento da vida de pessoas negras é imune a sofrer com a violência estatal.
Infelizmente, esse é um caso generalizado no país. Quase todo e pessoas periféricas e pobres de imensa maioria não-branca são os que morrem como efeito colateral. Só que pensar como efeito colateral ainda é muito simplista e desumano, já que o ataque é sempre ao varejo e quase nunca ao atacado.
É como se fizessem operações para dizer que estão resolvendo o problema, mas por traz dos holofotes continuam alimentando os mesmos esquemas. Ao mesmo tempo, mais jovens negros morrem para enriquecer uma pessoa que nunca vão conhecer.
Assim, fica claro que a vida de pessoas racializadas, que são a maioria nos espaços periféricos onde ocorre essas operações, vale muito menos pra polícia que uma vida branca.
Valorização da vida negra é essência do Carnaval
Por isso, quando uma influencer sulista posta um vídeo na internet reclamando que não é representada no Carnaval, é descarado o seu próprio racismo. Nós vemos mulheres brancas ocupando quase todos os postos da sociedade, tirando aqueles que o machismo impede.
Aliás, em qual lugar do Brasil que a mulher negra é protagonista, além do Carnaval? Sim, são poucos e a maioria, estereotipados. Não por falta de competência, mas pelo pacto narcísico da branquitude que só permite seus iguais. O quanto isso é consciente ou fruto do nosso próprio Estado que reproduz o racismo, é mais difícil responder.
Falo isso porque fui em uma mostra de cinema sobre o Carnaval na zona sul do Rio, onde está a elite cultural branca. O organizador do evento, que deixava claro sempre que não era um grande conhecedor do Carnaval, não conseguia compreender o prestígio para uma “mulata”, como a própria se autodenomina no documentário, em ser a rainha de bateria.
Quanta falta de responsabilidade social, de conhecimento da história do carnaval carioca, da própria resistência negra e exaltação da mestiçagem do século passado ele deixou de estudar?
Não seria ignorante demais fazer um evento tão relevante e importante para debate num ambiente elitizado como aquele sem uma pesquisa? A escola particular que ele frequentou não preocupou-se com o letramento racial? A branquitude se protege com sua própria ignorância. Mas não apenas ela: isso é muito mais comum e natural no ser humano do que achamos.
Racismo estrutural e estrutura
Ao voltar para a homenagem do desfile, do qual participei junto a outros parentes indígenas, uma amiga preta super antenada nas questões sociais e raciais brasileiras achou que eu estava fantasiado.
No caso, eu estava apenas com grafismos no corpo, que me representam como eu sou, e a minha retomada ancestral. Porém, como eu poderia exigir dela que soubesse quem eu sou de verdade se eu nunca a contei? Se a minha história foi silenciada por anos e minha retomada é tão recente?
Como ela poderia saber que aquilo não era uma fantasia se eu estava desfilando numa escola de samba no meio do Carnaval? Existem ignorâncias que beiram o racismo, mas outras que precisamos diferenciar.
Insistir em ignorar diz muito sobre si, mas errar aquilo que alguém nunca te ensinou é apenas humano. E isso não é uma defesa a sulistas que se dizem tão bem instruídos, mas sim uma crítica a nós mesmos.
Racismos
Às vezes, por sermos racializados e com consciência social, achamos que nunca reproduzimos racismo algum, só por sermos os alvos dele. Entender que esse vem também de nós mesmos, é nos reeducar todo dia para tentar agir de maneira melhor e mais responsável, porque enquanto existir briga entre pessoas racializadas, haverá racismo.
Essa é a tática mais inteligente que a branquitude nos impôs, porque ela se esconde do próprio discurso de purismo étnico-racial e joga nas costas dessas minorias, que não são geneticamente puras, que se encarreguem da produção de discursos carregados de expectativa de pureza racial.
Com isso, quero destacar que falar que uma pessoa miscigenada não deveria existir é comparável a falar que qualquer outra etnia não deveria existir. Chamar miscigenados de bastardos, desconfigurados, é apenas reproduzir a branquitude.
Para piorar, é cada vez mais comum acharmos pessoas que, sem fundamento, falam de genocídio negro a partir da miscigenação, enquanto um real ocorre pelo próprio militarismo brasileiro ou grandes empresas de minérios.
Ao tomar que o termo desejado por quem reproduz esse tipo de discurso é etnocídio, temos que ter consciência que esse não vem pela miscigenação. Ele existe pelo eurocentrismo e imperialismo americano que desvirtua a própria autenticidade de cada um de nós.
Logo, esse ocorre com até mesmo os que reproduzem os discursos afro-americanos que, por muitas vezes, são carregados de meritocracia e desenvolvimentismo eurocêntrico.
O futuro é ancestral
Apesar de ser difícil, precisamos entender que nós, desse território, temos nossas especificidades, que são absurdas, se comparadas ao EUA. Esse evento anual nosso, o Carnaval, é específico, resultado de um sincretismo gigantesco.
É incondizente com nossa realidade importarmos termos que não compreende a complexidade do que existe no Brasil. Se um futuro de bem-viver é possível, só existirá pela ancestralidade, ou seja, etnicidade, e essa você só encontrará no mundo ao seu redor.
Ela pode ter sofrido inúmeeras tentativas de apagamento, destruição e embranquecimento, mas sementes dos nossos antepassados resistiram. As aldeias, quilombos e diversas outras comunidades tradicionais não-brancas são esses lugares de resistência cultural.
O conhecimento oral da nossa família também. É a partir dele que podemos encontrar parentes distantes que perdemos nesse processo de embranquecimento. É neles que conseguimos ter acesso a culturas ricas, uma espiritualidade gigantesca e artesanatos lindos que são sustento de algumas dessas pessoas.
Se os europeus, ao chegarem aqui, decidiram catequizar todo mundo para evitar as revoltas, eles foram muito eficazes. A religião e espiritualidade são tão inerentes à identidade, que é muito efetivo atingir exatamente essa parte para levar não-brancos a se verem parecidos com a branquitude.
Mesmo com isso, ser não-branco é como uma marca dizendo a você a todo momento que nunca será completamente aceito por esse eurocentrismo. Nesse lugar, infelizmente, você sempre será tratado diferente dos outros mais claros ao seu redor.
Portanto, aquilombar, aldeiar, retomar sua etnicidade, é movimento político e anticolonial mais lindo possível nessa sociedade que quer nos apagar. Se o ano começa apenas depois do Carnaval, que comece sempre como um reset cultural para projetarmos para onde queremos ir e quem queremos realmente ser.
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