Carta aos estudantes de Direito: a minha vida, a sua vida. O seu Direito, o meu Direito, o nosso Direito. Homenagem não só àqueles que enfrentam com destemor as agruras do sistema punitivo, vencendo com louvor as chagas deixadas pelo cárcere, mas, também, aos Juízes de Direito que, ao defenderem, verdadeiramente, a Carta Constitucional, lutam contra um sistema desigual e desumano.

                 

 “A justiça humana não pode ser senão uma justiça parcial; a sua humanidade não pode senão resolver-se na sua parcialidade. O problema do direito e o problema do juiz é uma coisa só. Como pode fazer o juiz ser melhor daquilo que é? A única via que lhe é aberta a tal fim é aquela de sentir a sua miséria: precisa sentirem-se pequenos para serem grandes. Precisa forjar-se uma alma de criança para poder entrar no reino dos céus. Precisa a cada dia recuperar o dom da maravilha. Precisa, cada manhã, assistir com a mais profunda emoção ao surgir do sol e, cada tarde, ao seu acaso. Precisa,  cada noite, sentir-se humilhado ante a infinita beleza do céu estrelado. Precisa permanecer atônito ao perfume de um jasmim ou ao canto de um rouxinol. Precisa cair de joelhos frente a cada manifestação desse indecifrável pródigo, que é a vida”

 Francesco Carnelutti  (in As Misérias do Processo Penal, traduzido por José Antônio Cardinalli, 2008, p. 36) .


          O Direito, mais especificamente o processual penal, é fascinante: tem a incrível capacidade de nos deixar em êxtase com uma simples decisão, assim como tem o dom de entristecer as almas mais esperançosas.  Este artigo, que mais parece um desabafo, nasceu de uma profunda tristeza seguida de um raio de luz, daqueles que nos enchem de esperança.

Vivemos um momento complicado com a atual política de segurança pública unida a uma espécie de pensamento jurídico conservador e punitivista que ainda povoa o Judiciário, produzindo a sensação de que vivenciamos um período ditatorial, autoritário e despótico. Não caçam bruxas, nem matam subversivos, mas prendem, torturam e matam jovens pobres moradores de favelas, considerados inimigos públicos. A orientação seletiva da criminalização é inerente a qualquer sistema punitivo[1] e opera-se através de uma opção política. E convenhamos, a atual não é diferente daquelas operadas em períodos ditatoriais e autoritários.

Não é por menos que o Professor Doutor Nilo Batista afirma que o crime é fruto de uma opção política.

É cediço e comprovado pela história do sistema punitivo: as condutas daqueles que integram a camada pobre da população, quando criminalizadas, foram – e são – consideradas de alta periculosidade e, consequentemente, foram – e são –, sempre, e inexoravelmente sempre, punidas de maneira mais severa, seja no momento em que o legislativo define em lei condutas que serão criminalizadas, seja no momento do  cumprimento da pena no sistema prisional.

A título ilustrativo, vale citar a criminalização da Capoeira na época da escravidão[2] e o tratamento díspare que era concedido aos presos comuns e aos escravos nos estabelecimentos correcionais, como, por exemplo, no século XIX, na Casa de Correcção[3], onde aos primeiros era destinado tratamento compatível com o modelo ressocializante e aos segundos tratamento condizente com as vertentes retributiva, preventiva especial negativa e preventiva geral[4].

Atualmente não é muito diferente. A seletividade punitiva fica evidente diante de uma análise crítica, por exemplo, da atual Lei de Drogas, bem como da Lei de Crimes Hediondos. Verifica-se que o crime de tráfico, equiparado a hediondo, traz não só na cominação da pena (5 a 15 anos), como nas vedações absolutas à liberdade provisória e a conversão da pena constritiva de liberdade em restritiva de direitos e na obrigatoriedade de cumprimento de 2/5 da pena para a concessão de progressão de regime[5], uma periculosidade abstrata que emerge, única e exclusivamente, da descrição da conduta criminosa, que, em regra, está estereotipada na figura daqueles que se dedicam ao comércio de drogas nas favelas e periferias. A inconstitucionalidade de diversos dispositivos do referido diploma legal é tão evidente que, em 15 de fevereiro do corrente ano, o Senado Federal editou a Resolução 5 de 2012, suprimindo da Lei em comento a parte que vedava a conversão das penas privativas de liberdade em privativas de direitos.

A guisa de reflexão, pergunto: quem são os temidos traficantes?

Todavia, é de se esperar do leigo os reclamos punitivos mais severos, perversos, autoritários, preconceituosos e desproporcionais, mas é inconcebível, data venia, que aqueles que têm a missão de defender a Carta Constitucional vejam o processo penal como instrumento de punição de classes consideradas perigosas (ou de quem quer que seja) e não de garantia de um processo igualitário, justo e em conformidade com a Constituição da República e, consequentemente, de respeito às regras do jogo – independentemente de quem esteja jogando –, uma vez que este tipo de visão materializa o preconceito enraizado no seio de uma sociedade elitista, herança, por certo, de uma não muito longínqua época escravagista.

Quando este tipo de visão impera no coração do Judiciário, a (in)Justiça fala mais alto, esbraveja, faz tá  bula rasa de direitos e garantias fundamentais e condena, sem piedade. A decisão, não raras vezes, espelha a seletividade do sistema punitivo[6] e, consequentemente, a criminalização da pobreza, limitando-se, com redobrada vênia, a burocratizar atos praticados por autoridades policiais, uma vez que os Magistrados e Promotores “passam a ter delimitadas suas faixas de atuação pela polícia”[7], como assevera o Professor Doutor Orlando Zaccone.

          O problema é agravado na medida em que, como é de notória sabença, as autoridades policiaisforam– e são –  treinadas para agir como se estivessem em guerra, o que justificaria o desrespeito aos direitos fundamentais inerentes a pessoa humana, já que na guerra não existe respeito às regras. Ora, com redobrada vênia, o que são as músicas ensinadas e cantadas no treinamento daqueles que almejam integrar o BOPE? Na esteira deste raciocínio, diversas prisões e investigações ilegais são perpetradas e, muitas vezes, a autoridade judiciária, como supra mencionado, limita-se a burocratizar tais atos.

Seguindo os ensinamentos de Zaffaroni e Nilo Batista, atrevo-me a dizer que o Judiciário, tem, justamente, o dever de podar os excessos e arbitrariedades praticados pelas autoridades policiais, realizando a necessária contenção do Estado de Polícia sobrevivente dentro do Estado de Direito[8].  Em que pese as diversas formas e mecanismos disponíveis em lei para demonstrar a ilegalidade de um determinado ato, na prática, é muito difícil desconstituir a presunção de legalidade do ato que emana da autoridade policial, justamente, porque, geralmente, do outro lado, ou seja, sentado no banco dos réus, está aquele típico representante da criminalidade tosca, que, em regra, é originário das chamadas classes perigosas.

Pensar que existem julgadores que se orgulham de não absolver ninguém! Como pode alguém sentir prazer em punir, prender, castigar. Justiça e pena não são sinônimos, não se confundem, tampouco se parecem.

Ora, venhamos e convenhamos, Justiça e pena de prisão caminham separadas, a começar pela origem das palavras: pena, vinda do latim poena que, por sua vez, vem do grego poné – vingança – , e justiça, vinda do latim justitia, que significada dar a cada um, o que é seu.  E desde quando o estado, de notória sabença, do precário, desumano, ilegal, ilegítimo e perverso sistema prisional brasileiro, verdadeira vingança realizada pelo Estado, é do merecimento de algum ser humano? Faz-se necessário dizer que não se pode perder de vista que nosso Estado está calcado na dignidade da pessoa humana e tem como um deseus dogmas a humanidade da pena e, assim sendo, uma pena ilegal e ilegítima – porque perversa e desumana – não pode significar dar a cada um o que é seu. Não em um Estado Social Constitucional Democrático de Direito.

Onde está a justeza e a legitimidade de um sistema punitivo que, além de selecionar as obras toscas da criminalidade nas camadas mais pobres da população, joga o apenado em verdadeiras masmorras, humilhando-o,  despindo -o de sua dignidade, pervertendo e deteriorando seus melhores sentimentos?

Quando a visão do senso comum punitivista, que permeia o imaginário popular, povoa o coração da Justiça, transforma o que deveria ser a última ratio, em um fetiche.

Todavia, da desilusão nasce a esperança e nem tudo está perdido. Certas pessoas, certas histórias, certas decisões, certos Julgadores, Defensores, Advogados, Promotores e Professores, nos enchem de esperança, fazendo-nos não desistir, não temer, tampouco desertar.

A história de uma família despertou minha atenção. Há pessoas que nascem com vontade de vencer, de amar, de proteger, de superar.  Pessoas  de caráter firme e personalidade forte, que ultrapassam dificuldades inimagináveis e criam os filhos com invejável dignidade. Conheci há algum tempo, uma dessas pessoas: Simone Menezes que, além de mãe, esposa e avó, é, também, militante de Direitos Humanos. E  que militante!

Nossos caminhos se cruzaram na Alerj, em uma Palestra sobre Direitos Humanos e Sistema Prisional. Naquele dia tive certeza que a força daquela mulher, que discorria sobre as mazelas e arbitrariedades do cárcere com uma verdade comovente, moveria montanhas.

O tempo passou, terminada a faculdade, fui presenteada pelo destino e por um amigo jornalista, André Fernandes, com a oportunidade de conversar com Simone Menezes e por bastante tempo. O assunto era o sistema prisional, tema do meu artigo de Pós Graduação, que ela domina com maestria. Conversamos durante um bom tempo e sua profunda visão sobre o assunto, ajudou-me em demasia.  Recomendo a leitura de  uma entrevista com a aguerrida militante publicada na Revista Discursos Sediciosos[9].

A vida dessa família é impressionante. Estudante de direito, militante de direitos humanos, mãe de três filhos, Simone visitou o marido, Wiliam da Silva Lima, durante 27 anos, no sistema prisional. Lutou bravamente por um sistema punitivo mais humano, falou à desembargadores, juízes e familiares de detentos. Acreditou  no ser humano, defendeu a dignidade de seu marido, de milhares de detentos e de filhos com unhas e dentes, criando-os com firmeza de caráter e, mesmo sendo obrigada a carregar o fardo do estereótipo que pesava sobre sua família, não desertou. A sua recompensa poderia tardar, mas, lá no fundo, eu sentia, que chegaria.

E tinha razão. Fui brindada com a honra de compartilhar de um momento sonhado, há muito, por aquela família. Uma linda decisão, arrimada na dignidade da pessoa humana, humanidade da pena e na excepcionalidade presente no caso concreto, concedeu, atendendo o pleito do brilhante advogado André Barros, prisão albergue domiciliar ao Senhor Wiliam.

Antes de tudo, faz-se necessário frisar que a decisão em comento rompeu barreiras, já que a prisão albergue domiciliar, prevista no artigo 117 da Lei de Execução Penal, exige que o apenado esteja cumprindo pena em regime aberto, uma vez que o mesmo diploma legal traz a previsão de que pena privativa de liberdade será executada de forma progressiva.  Contudo, uma brilhante Magistrada de coração nobre deu vida a Carta Constitucional, traçando contornos constitucionais à Lei de Execução Penal.

A assentada, de apenas, três folhas, devolveu a liberdade não só ao Senhor Wiliam, marido, pai, avô, poeta e escritor, mas a toda sua família. A decisão é daquelas que enche o coração de esperança e  acalma o espírito dos inquietos defensores da Carta Magna. Portanto, vale a pena transcreve – lá, ainda que em parte:

“verifico que a gravidade do quadro de saúde do apenado aliado à impossibilidade de tratamento de sua patologia no sistema prisional, ensejam o deferimento de PAD como força de salvaguardar a vida, a saúde e a integridade física do apenado. Ademais deve ser destacado no caso em tela que o apenado se encontra totalmente reinserido e que seu encarceramento em nada contribuiria para a sociedade, além do que já cumpriu quase vinte e sete anos de pena. Por conta desses fundamentos, concedo a prisão albergue domiciliar…”   

Quiçá, esta brilhante Magistrada e o aguerrido advogado não avaliem a grandeza do bem que fizeram àquela família, a tantas pessoas, inclusive a mim que pude assistir de perto a vitória daquela família.

Esta é uma triste história que se tornou linda em razão de uma decisão histórica, humana e constitucional. Pobre daquele que não consegue enxergar a beleza de uma absolvição, que não sente felicidade em conceder uma liberdade, que não é capaz de sentir-se em paz com a alegria daquele que é absolvido, com as lágrimas de felicidade de uma família sofrida.

De modo que, por isto, no início desta carta, mencionei a visão punitivista como um fetiche que povoa o coração da Justiça. Felizmente, apenas povoa, não domina. Ainda há quem se arrisque a pensar diferente, quem defenda a Constituição da República e, o melhor, quem acredite no ser humano.

A história desta família e algumas outras decisões e  histórias de vida, em especial, marcaram a minha vida, simplesmente, porque elas  não são apenas daquelas famílias.  De  certa forma, elas são um pouco minhas, suas, nossas, porque o direito não é deles, é de todos. A vitória é da família, mas, também, édo Estado Democrático de Direito.

                   

Histórias como estas mexem com meu lado emocional, trazendo à tona recordações da minha época como estagiária, mais precisamente da segunda semana do meu terceiro e último estágio, onde fiquei por três anos. Naquela época, já havia trancado a faculdade diversas vezes e pensava em trancar de novo, mas aquele lugar e a Juíza Titular daquela Vara Criminal, me fizeram mudar de idéia. Por isto, vou falar-lhes sobre minha primeira peça de Alegações Finais.

A versão do assistido era plausível, acreditei nele, fiz o meu melhor, mas o trabalho era de principiante. Entreguei ao Defensor, a quem muito devo profissionalmente, e disse:  se o Senhor achar que não tenho vocação, me fale. Penso em trancar a faculdade de novo.

Algum  tempo depois, veio a sentença. Aquela Juíza, de notório saber e coração nobre, havia absolvido o assistido, dando vida a um princípio cuja a força, até então, eu não conhecia: o in dúbio pro reo. A prova era fraca e a versão do assistido coerente, não foi a minha petição, foi o olhar da Juíza.

Aquela brilhante Magistrada, aguerrida defensora da Carta Constitucional, quiçá desconheça a imensidão do bem que fez, não só àquele assistido, mas a sua família, ao Estado de Direito e, também, àquela jovem estagiária que desistiu de trancar a Faculdade de Direito.

Aquela decisão, reconhecendo que a prova não era segura, foi mais que uma decisão, foi um feixe de luz, o despertar de um amor incondicional,  uma verdadeira esperança. A garantia fundamental da presunção de inocência e o in dúbio pro reo existiam, efetivamente, e eu era testemunha disto.

Os três anos de estágio foram os melhores da minha vida. Além de presenciar brilhantes decisões, ler pareceres e petições de altíssimo nível, bebendo diretamente da fonte do saber, pude descobrir que, ainda, há quem acredite no ser humano, defendendo, bravamente, direitos e garantias fundamentais. Foi emoção atrás de emoção diante de tantas histórias e decisões.

Não foi por menos que este artigo, singela homenagem não só aos Magistrados que defendem com bravura os mandamentos constitucionais, como às famílias que enfrentam com destemor as mazelas do cárcere, vencendo as agruras do sistema punitivo, foi dirigido aos estudantes de direito.

Estudem, ignorem o preconceito, lutem, não desistam de defender o Estado Democrático de Direito, tampouco desertem, e jamais se esqueçam: é necessário amar incondicionalmente o ser humano, tolerar, compreender e acreditar para prender, acusar, defender e julgar. A interpretação abstrata da Lei carece não só de sabedoria, mas, também, de humanidade. Não é por menos que nosso Estado está calcado na dignidade da pessoa humana.

Termino esta carta com uma poesia escrita por Wiliam da Silva Lima, quando cumpria pena no sistema carcerário, dentro da “solitária” (cela onde ficavam os presos que, por algum motivo, haviam cometido alguma falta disciplinar).

ENTEDIADO

Tarde linda!

Linda como a própria vida.

Infinita como o próprio amor.

E eu, querendo fazer versos

Querendo sentir amor.

Procuro um tema:

Falar da tarde?

Não consigo.

Falar da vida?

Não posso.

Falar do amor?

Não tenho.

E a tarde linda

Linda como a própria vida!

Infinita como o próprio amor!

E eu querendo fazer versos,

querendo sentir amor.

Dedico este artigo àqueles que fizeram parte destas histórias, aos Assistidos, Defensores, Promotores e Juízes com quem tive a honra de trabalhar e em especial à Simone Menezes, Wiliam da Silva Lima, Marina Morena, Demétrio, Guilherme, Davi e João Miguel, verdadeiros heróis desta história.


[1] Zaffaroni e Nilo Batista discorrem de forma genial sobre a orientação seletiva da criminalização secundária  (in Direito Penal Brasileiro, v. I, 3ªed., 2006, p. 45/46)

[2]  Sobre o tema Duque Estrada, Rodrigo descreve com maestria as bases e contornos do Sistema Carcerário no Brasil, traçados no âmago da sociedade escravista ( in Direito e Prática Histórica da Execução Penal no Brasil, Renavan, 2005, p. 35).

[3] Idem, p. 42 e 43.

[4] idem

[5] Lei 11.343/06

[6] Zaffaroni e Nilo Batista discorrem de forma genial sobre a orientação seletiva da criminalização secundária  (in Direito Penal Brasileiro, v. I, 3ªed., 2006, p. 45/46)

[7] Orlando Zacone assevera que “ A magistratura e o Ministério Público passam a ter delimitadas as suas faixas de atuação pela polícia, que, na realidade das práticas informais, decide quem vai ser processado e julgado criminalmente” ( in Acionistas do nada: Quem são os traficantes de drogas, 2ªed., 2008, Renavan, p. 16).

[8] Zaffaroni, Raúl; Batista, Batista.  in Direito Penal Brasileiro, v. I, 3ªed., 2006 , p.41

[9] Menezes, Simone. In Discursos Sediciosos, Renavan, 2004, p. 9.