Não é à toa que inicio este texto parafraseando o samba-enredo campeão deste ano no Rio de Janeiro. O que uma mulher de 38 anos e uma menina de 8 tinham em comum é que ambas eram cariocas, negras, faveladas e foram assassinadas. Uma era socióloga, mestra e foi democraticamente eleita como vereadora; a outra era estudante numa escola pública municipal e tinha o sonho de se apresentar em um circo. A primeira não conseguiu terminar o mandato e a segunda não conseguiu concluir a escola. Ambas foram silenciadas.
De acordo com o Mapa da Violência de 2016, “A vitimização negra no país, que, em 2003, era de 71,7% (morrem, proporcionalmente, 71,7% mais negros que brancos), pula para 158,9%, em 2014.” (p.60). No Brasil contemporâneo, a herança escravocrata se reconfigura pela hierarquização das relações e pelo racismo que torna suspeito todo aquele que é negro e pobre. Trata-se da criminalização da pobreza, que extermina uma juventude, lhe classifica como delinquente e ignora toda sua potencialidade enquanto produtora de arte e cultura. Este cenário sempre me atravessou. Sou professora, é o que escolhi, porque eu acredito na Educação. Como não pensar nos que morrem dentro da escola, a caminho da escola, na volta da escola?
Todo dia uma Ágatha nova silenciada e o discurso midiático hegemônico lança aquela manchete sensacionalista, que se utiliza de seu repertório discursivo para tornar a vítima o vilão. Meu coração de professora-pesquisadora não podia aceitar que não haveria sequer um veículo de comunicação diferenciado. Foi quando, em uma conversa com meu orientador do mestrado, conheci a Agência de Notícias das Favelas, fundada e dirigida pelo grande jornalista André Fernandes. Pesquisei e me encantei com a proposta da Agência. Pesquisando mais, li o livro escrito pelo André, “Perseguindo um sonho: A história da fundação da primeira agência de notícias de favelas do mundo”. Quanta sensibilidade! Desde questões delicadas envolvendo a (infelizmente) inesquecível chacina de Vigário Geral até o “Manifesto do Movimento Favelania”, o André evidencia uma escuta sensível em seu trabalho nas favelas. No Manifesto que cito, especialmente, me emociono na leitura, pois, segundo ele, “Distribuímos esse manifesto para milhares de pessoas em dezenas de favelas e depois começamos a conversar com moradores, lideranças e personalidades” (p.50), em que constavam artigos dos Direitos Humanos universais como forma de conscientizar a população do que elas também podem e do que não devem admitir, afinal, invasão de domicílio por parte da polícia, por exemplo, nunca foi nenhuma novidade pelo Rio de Janeiro.
Como se não fosse o suficiente, o André vai desdobrando ao leitor uma série de outros projetos como a fundação da Agência de Notícias das Favelas e o lançamento do jornal “A voz da Favela”, uma alternativa de comunicar o que é e acontece pelas juventudes cariocas produtoras de culturas e de vida.
Para encerrar este texto, deixo um dos meus trechos preferidos do livro:
“Favela versus Comunidade: Existe uma vida comunitária na favela, mas favela é favela! Favela só deixa de ser favela quando tudo o que é inerente à cidadania de quem vive no bairro de Ipanema é exatamente igual ao cidadão de Vigário Geral ou do Vidigal. Comunidade é um termo utilizado ultimamente, principalmente pela grande mídia e pelas elites, creio eu, com o propósito de esconder justamente as desigualdades sociais desses lugares pobres, que ainda estão muito longe de serem, de fato, comunidades no sentido que se tenta apresentar. Só para corroborar esse pequeno pensamento, lembro que os condomínios de luxo da Zona Sul do Rio de Janeiro são chamados de comunidades. Então, o que leva a Elite e a grande mídia a chamarem as favelas de comunidades? Será que é a mesma coisa? O que se tenta esconder?” (p.57)