Coletivo leva arte para presídio feminino psiquiátrico em São Paulo

Carolina passou fome. “Eu também”. Carolina foi vítima de violência doméstica. “Eu também”. Carolina foi presa. “Eu também!”. As similaridades entre a vida da escritora Carolina Maria de Jesus e mulheres presas ganharam projeto e peça teatral em Somos Todas Carolinas, encenada pelas pacientes do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Prof. André Teixeira de Lima, de Franco da Rocha, Região Metropolitana de São Paulo.

As apresentações aconteceram entre os dias 4 e 14 de julho, em uma iniciativa do Projeto LibertÁrte, do Coletivo Poetas do Tietê. Tudo começou com a percepção da atriz e poeta Cissa Lourenço, quando realizou uma atividade artística em 2018 no Presídio Feminino da Capital. Foi quando ela se deu conta da grande relação que existia entre a história da escritora Carolina Maria de Jesus e a de algumas mulheres presas.

Detenta mostra cartaz produzido nas oficinas de preparação para a peça teatral. FOTO: Divulgação

Na ocasião, após a leitura de um trecho do livro Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada, uma detenta chegou até Cissa e disse “nossa, a vida da Carolina parece com a minha”.

A frase ficou na cabeça da atriz, que, a partir de então, começou a estudar a biografia e a obra da escritora favelada. Então percebeu que realmente havia muita coisa parecida entre a história de Carolina Maria de Jesus e a vida das mulheres presas.

“Parece uma frase meio clichê, mas a vida da Carolina dá muita esperança para elas. Apesar de todo o sofrimento, de todas as dificuldades, ela conseguiu. Foi nesse paralelo que começou a concepção do espetáculo Somos Todas Carolinas, conta Cissa Lourenço.

Entender as presas reformulou a proposta

Contemplado pelo edital Proac de Teatro, o projeto, escrito pelo Coletivo Poetas do Tietê, foi pensado para ser realizado no Presídio Feminino da Capital, mas acabou sendo acolhido pelo Hospital de Custódia e Tratamento Franco da Rocha, onde vivem cerca de 76 mulheres e 469 homens.

Diferente de outras penitenciárias, Franco da Rocha é um hospital de tratamento psiquiátrico. Nele estão pessoas diagnosticadas com algum problema psíquico, que cometeram crimes devido a suas condições de saúde, por isso estão em tratamento. 

Ao chegar no local e iniciar as atividades de imersão, a equipe do projeto mudou o formato inicial da peça. Ela teria crítica social evidente, mas optaram por uma inclinação mais emocional, mais sensibilizadora.

 “No entanto, o projeto nunca deixou de ser crítico. Muitos preconceitos que a Carolina viveu, as mulheres negras continuam sofrendo, as mulheres negras presas continuam vivendo, é muito cruel“.

Cissa Lourenço completa: “Se pensarmos que tudo que Carolina passou e agora, nós estamos no ano de 2023, ainda tem muitas coisas parecidas. É muito triste, pensando em preconceito e racismo”.

Cenário composto pelas detentas para a peça Somos Todas Carolinas. FOTO: Divulgação

A intenção do projeto era escrever a peça a partir da provocação com histórias de Carolina Maria de Jesus. “Daquelas 21 mulheres que participaram da peça, mais da metade foram estupradas na primeira infância, ou por familiares ou por companheiros da mãe. Foram histórias que preferimos não colocar no espetáculo. E tudo foi sempre muito dialogado com elas. O projeto foi uma construção realmente coletiva”.

A construção do espetáculo

Todo o processo de elaboração foi intenso, com seis meses para estudar e ensaiar e bastante sensibilidade para compreender a resistência e limitações de cada uma das detentas, para conseguir incluir todas, respeitando cada um dos corpos.

Elas receberam material sobre a obra e a vida de Carolina Maria de Jesus e, a partir daí, realizaram uma oficina, escrevendo sobre o que quisessem, a partir de suas vivências. Os poemas produzidos foram distribuídos durante as apresentações abertas ao público, com o cuidado para trocar os nomes reais por pseudônimos.

Além dos poemas, as atrizes produziram o cenário com pinturas nos murais. São suas próprias representações expressas nas tintas, com estilizações e palavras que remetem ao que elas estavam sentindo no momento.

Outro recurso foi a utilização de diversos instrumentos de percussão, para marcar o ritmo, tornar a peça mais lúdica e fazer a mudança de cenas. Isso foi ideia de Sabrina Carvalho, preparadora corporal e musical, responsável por harmonizar voz, ritmo, volume e consciência corporal. 

Exercícios lúdicos visando aprimorar a agilidade e resistência dos corpos para a peça. FOTO: Divulgação

Ao se deparar com as vinte uma mulheres que participaram do projeto, a primeira atitude foi conhecer cada corpo e o grupo todo, investigando o que tinham para oferecer e o que era necessário trabalhar para que os corpos fossem além. 

Por exemplo, na cena em que se corria de um lado pro outro: alguém dizia “Carolina passou fome”, e as mulheres corriam e diziam “eu também”. Essa cena exige todas as atrizes correndo e, de repente, uma sai do bolo e fala: “Carolina trabalhou de empregada doméstica“, e as atrizes correm novamente falando “eu também”. A ideia é ótima, mas como realizar?

“Neste sentido, para o movimento que elas tinham, jamais fariam essa cena, não tinham ritmo, elas sequer andavam rápido, não corriam, é proibido correr lá dentro. E aí eu trabalhei todo uma rítmica, fiz toda uma brincadeira, fiz elas malharem, fiz elas falarem, tudo de uma forma brincante, porque a gente sabe que tudo com prazer a gente aprende mais rápido”, Sabrina Carvalho, a preparadora das atrizes.

O exemplo histórico de Nise da Silveira

Na década de 1940, após sua prisão, a psiquiatra Nise da Silveira retomou seu trabalho em um centro psiquiátrico do Rio de Janeiro. Como os métodos usados para o tratamento das pessoas internadas eram violentos e desumanos, Nise trabalhou com a intervenção artística e a terapia ocupacional para contribuir com a melhora das pessoas internadas.

Deixou-as ocupadas com várias tarefas, desde a limpeza até a prática de artes, como pintura e modelagem, observando uma melhora significativa no quadro dos pacientes que passavam por esse tratamento. Os métodos são usados até hoje como referência para o tratamento de pessoas internadas com transtornos psiquiátricos. 

Com o espetáculo em Franco da Rocha foi possível perceber a melhora no quadro das pacientes, situação detectada pelos funcionários e pelo próprio diretor. Na ocasião do lançamento do livro Somos Todas Carolinas, no dia 24 de julho, houve a realização de uma solenidade no centro da cidade de São Paulo como agradecimento ao Coletivo Poetas do Tietê. Ele deve continuar as atividades no próximo ano. 

Mulheres participaram de oficinas de escrita, fundamentais para liberar a expressividade. FOTO: Divulgação

Está todo mundo percebendo a melhora

Para o diretor do Hospital, Luiz Henrique Negrão, as parcerias no HCTP, nas quais variam desde eventos religiosos, shows, ensaios fotográficos e trabalhos artísticos e culturais,  “são fundamentais para humanização, algumas pessoas visitam o hospital e se surpreendem. Elas dizem, puxa, não sabia que o hospital era assim”.

Sua análise foi a de que, ao levar a arte cênica ao ambiente hospitalar, tornou-se possível proporcionar esperança e expressão para quem está em tratamento. “A poesia desenvolvida pelas participantes e compartilhada com as colegas do convívio ofereceu uma oportunidade para libertar pensamentos, emoções e experiências em coletivo, concedendo a chance de dar voz ao que está guardado no interior dos corações, possibilitando a reflexão, a cura e a conexão entre as histórias de vida das próprias pacientes. E nos ensina a apreciar a beleza nas pequenas coisas da vida, mesmo em um ambiente tão desafiador”, acredita o diretor.

Sabrina Carvalho, a preparadora das atrizes, também acompanhou a diferença dos corpos em todo o processo. “Desde janeiro, quando as mulheres entraram conosco, as diferenças físicas são muito grandes, dos olhares, do funcionamento dessas mulheres. Algumas mais, outras menos, mas todas, de alguma forma, tiveram alguma diferença notável no desenvolvimento”. 

Outro ponto importante foi o grande cuidado que o projeto teve em remunerar as artistas. “Para além de realizar uma atividade cultural, elas fizeram um trabalho de profissionalização, e isso contribui para o processo de resgate de autoestima“, diz a preparadora Sabrina Carvalho.

Dessa maneira, o projeto funcionou também como uma formação, uma espécie de estágio. “Isso é uma troca e as valoriza, ainda mais em um lugar que as mulheres são abandonadas pela família. Quando elas saírem daqui, na maior parte dos casos, não têm nada, então isso é muito importante, além da relação com o psicológico, a importância delas saírem daqui com um dinheiro para um recomeço de vida”, conta Cissa Lourenço.

Liberdade de mentes para dentro do presídio

Dentro do Coletivo Poetas do Tietê, existe o projeto LibertArte – Arte Liberta, ideia criada por Jaime Queiroga, que também fazia parte do Coletivo. O projeto existe anteriormente à concepção de Somos Todas Carolinas. A proposta é levar a poesia, a arte e o sarau, especialidade do Coletivo Poetas do Tietê, para dentro das unidades penitenciárias: feminina, masculina e Fundação Casa.

“A ideia é gerar liberdade através do conhecimento e da mente, gerar liberdade mesmo dentro do presídio. Assim, a gente consegue libertar essas pessoas. Através da arte a gente expande a visão, a gente gera conhecimento”, diz Sabrina Carvalho. Para ela, isso pode “virar de chaves na vida das pessoas presas”.

Pátio como local de criação artística da peça Somos Todas Carolinas. FOTO: Divulgação

Colaboração Gabriel Granja

Esta matéria foi produzida com apoio do Edital Google News Initiative.

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