O número de trabalhadores no período noturno cresceu nos últimos anos, ultrapassando 13 milhões de pessoas, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Já o volume de estudantes matriculados em cursos noturnos de graduação superou a quantidade de alunos em cursos diurnos, segundo o último Censo da Educação Superior, realizado em 2018. Um quadro semelhante se desenha no ensino médio, com mais de 1,8 milhão de jovens estudando no turno da noite em todo o Brasil, como indica o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Os dados sugerem uma maior presença e deslocamento da população brasileira no espaço urbano no período noturno, intensificando a demanda por uma cobertura mais ampla do transporte público. Linhas fora de operação, redução de veículos e maior tempo de espera são algumas das reclamações de quem precisa utilizar o serviço, especialmente, depois das 22h.
No Rio de Janeiro, o trem, principal meio de conexão entre a capital e os municípios da Baixada Fluminense, encerra a operação às 22h45. O metrô, que interliga as zonas Norte, Sul e um pequeno trecho da Zona Oeste, fecha as portas um pouco mais tarde: meia-noite. É também nesse horário que o BRT, corredor que atravessa os bairros das zonas Norte e Oeste, para de funcionar. A partir desse período, poucas linhas do ônibus convencional continuam rodando, com frota reduzida e intervalos irregulares.
“Se eu estiver fora da Zona Oeste, eu fico no lugar onde estou. Na verdade, eu já saio de casa tendo uma previsão de onde eu vou ficar e na casa de qual amigo vou dormir, pois, não tem como voltar para casa”, explica Lucas Ronconi, de 25 anos, morador da Taquara, bairro da Zona Oeste do Rio. Ele afirma ainda que se estiver às 21h na Zona Sul da cidade, por exemplo, procura não voltar para casa, pois, terá que pegar três conduções e ainda andar um longo caminho até chegar onde mora.
Muitas vezes o jovem precisou ficar na rua esperando amanhecer para conseguir transporte e voltar para casa na saída de festas ou da faculdade. Durante pouco mais de quatro anos, ele atravessava a cidade até a Universidade Federal Fluminense (UFF) na cidade de Niterói, Região Metropolitana do Rio. Na graduação em Jornalismo, boa parte de suas aulas eram no turno da noite. Saía de Niterói mais de 22h, parava na Avenida Brasil para pegar outra condução e continuava o caminho pela Linha Amarela. Por vezes, chegava em casa de madrugada.
Hoje, Lucas diz que prefere não arriscar, já sai de casa com uma roupa reserva na mochila e um “plano B” de onde dormir, caso fique tarde para voltar. O trabalho com teatro o leva a transitar em lugares distantes à noite e até durante a madrugada. A rotina não é fixa, mas a maior parte das apresentações é no período noturno e os ensaios, que antecedem os espetáculos, costumam acabar bem tarde. Além de se sentir inseguro em fazer o trajeto de retorno, ele relata que o tempo de viagem, assim como o número de baldeações, aumenta muito. Para lidar com essa dificuldade, precisou criar alternativas.
“Não dá para dormir toda semana na casa de alguém, então comecei a pensar em estratégias. Ou pego carona ou faço baldeação com o BRT até um ponto mais próximo de casa e peço um carro por aplicativo. Eu comecei a fazer isso, buscar essas estratégias de me colocar em um local seguro e mais perto de onde moro para que eu consiga pedir um carro por aplicativo e chegar em segurança”, explica Lucas.
A melhor tática, segundo ele, ainda é evitar transitar e usar transporte público depois das 22h. “As estações do BRT são mais largas, abertas e não tem como sair do ônibus em qualquer lugar do caminho. Isso causa uma sensação de que se algo acontecer, você está preso dentro do carro. Eu acho que o BRT é mais vulnerável”, opina.
A insegurança é uma sensação que viaja junto com os passageiros do transporte público em várias cidades do país. Três a cada dez usuários nunca se sentem seguros ao utilizar o sistema público de transporte. Esse número sobe para quatro quando considerados apenas passageiros que passaram por alguma situação de violência no transporte nos últimos 12 meses. Os dados fazem parte de um estudo de percepção dos brasileiros sobre o transporte público, realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
A sensação de insegurança, que sempre acompanhou Felipe Santos, na caminhada entre a estação do metrô e sua casa, na favela do Capão Redondo, Zona Sul de São Paulo, se transformou em uma situação real de violência no último mês. Por volta das 22h, quando percorria a pé o trecho de 20 minutos até sua casa, ele sofreu um assalto. O jovem, de 22 anos, diz evitar o trecho e costuma pegar ônibus ou transporte por aplicativo para chegar à estação. O mesmo vale para as linhas noturnas. Por conta da sensação de insegurança, ele evita usar o serviço. “As linhas noturnas, por terem uma demanda menor, têm menos ônibus. O intervalo, às vezes, é muito grande, dependendo do lugar que você está, chego a ficar 30 minutos esperando no ponto de ônibus sozinho e não é um local muito confortável para ficar”, avalia.
A região onde Felipe mora tem uma estação de metrô e dois terminais de ônibus próximos. Ele conta que a variedade de linhas é grande, mas a frequência com que cada uma delas passa é baixa e irregular. O problema se intensifica de noite, quando o número de veículos começa a ser reduzido. Segundo o jovem, não é preciso transitar de madrugada para sentir a carência de transporte no período noturno, ela começa a ser percebida nos fins de noite. Retornar para casa tarde da noite faz parte da rotina de Felipe, que faz estágio no bairro da Liberdade e estuda em Higienópolis, na região central da cidade.
Para o jovem, o transporte e a segurança são limitadores no seu trânsito pela cidade. Frequentar lugares à noite, ir a festas ou encontrar amigos fora da Zona Leste são coisas que o jovem diz evitar. “Eu evito me colocar em situações que precise voltar de madrugada. Quando acontece, eu espero amanhecer. Também depende muito da distância que eu estou de casa, às vezes compensa mais usar o transporte privado, porque é mais seguro, mais confortável e tem o registro da corrida se acontecer alguma coisa. Então, dependendo da distância, eu opto por carro por aplicativo. Se for transporte público, eu evito”, explica ele.
Transporte coletivo e noturno em São Paulo
A existência de um transporte noturno acessível à população, na visão de Ana Odila, conselheira do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP), é uma forma de garantir o direito à cidade, ao criar soluções para que as pessoas acessem os serviços, espaços e equipamentos dispersos no território urbano. Viabilizar rotas de acesso à delegacias, unidades de saúde, ao trabalho ou às áreas de bares e restaurantes é uma questão de cidadania e também de resgatar a função social do transporte público. “Uma coisa tem que ficar clara, o transporte coletivo noturno não se paga. O Estado precisa estar disposto a pagar o serviço. É uma mudança de lógica, você não atende demanda, você atende território”, alerta Odila.
Entre 2013 e 2016, Odila esteve à frente da equipe que realizou a implantação da rede da madrugada na cidade de São Paulo, projetada para operar entre 00h e 4h. A capital é uma das poucas do país a contar com um sistema de ônibus 24 horas, que passou a funcionar há cinco anos. Adequar o transporte coletivo para atender às características da mobilidade noturna é um desafio, segundo a engenheira.
“Como é feito o planejamento nos horários de pico? Todo mundo está indo para os mesmos lugares e utilizam os mesmos caminhos, as mesmas vias, por isso que tem o congestionamento, porque todo mundo quer ir para o mesmo lugar. Agora, quando você pega a demanda noturna, ela dispersa não só no horário como também geograficamente. Para você atender a uma demanda pequena e dispersa você precisa ser radical na racionalização da rede e isso implica em integração”, explica.
Verificar a distribuição das viagens pelo horário é uma das métricas utilizadas na Pesquisa Origem Destino, que serve como base para o planejamento urbano dos municípios. O objetivo do indicador é identificar os períodos de pico nos deslocamentos, no entanto, ele revela também como se comporta o fluxo em outros horários. Na cidade de São Paulo, a curva tem início perto das 3h e alcança 500 mil viagens pouco após as 4h. Na outra ponta, o gráfico também revela uma alta na demanda entre 21h e 23h.
Os dados, no entanto, não revelam o cenário real. Segundo Ana Odila, havia uma demanda reprimida, que, pela falta do serviço, não era identificada nas pesquisas. “O transporte noturno passou a atender os trabalhadores do turno da noite, pessoas que antes, normalmente, dormiam no serviço”, explica Odila. Além disso, ela afirma que quando esse serviço começou a funcionar, houve um aumento da demanda nos finais de semana. “Não era uma demanda só de trabalhadores, era principalmente de pessoas que começaram a poder sair de madrugada para passear, pessoas que até então ficavam mais restritas ao lugar onde moravam e ao que elas conseguiam fazer a pé”, conclui.
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