Todos os dias a assistente social Dayse Barros dos Santos, 32 anos, acorda às 6h para mais um dia de trabalho. Ela mora sozinha com as filhas de 2 e 10 anos, que ficam com a tia durante o dia, neste período de pandemia. Dayse caminha cerca de 10 minutos até o ponto de ônibus, que não demora mais do que 5 minutos. O coletivo está sempre lotado, se esperar o próximo, pode ser que tenha a sorte de ir sentada até a estação de trem de Campo Grande, zona oeste do Rio de Janeiro. Quando não está atrasada, ela substitui o ônibus por uma caminhada mais longa, de 25 minutos, assim economiza a passagem, que sai do próprio bolso. “Se eu dissesse para a empresa que precisaria de três passagens, já viu né?”.
Depois do trem, Dayse ainda embarca no metrô na Central do Brasil rumo à estação Carioca para então chegar ao escritório da empresa em que trabalha no Centro da cidade. São 5 horas perdidas no deslocamento diariamente. “Seria mais ágil se os trens rápidos voltassem a circular, agora só tem o parador”, reclama.
No caminho de volta para casa, a saga se repete e Dayse ainda acrescenta uma parada no mercado. “Com crianças, está sempre faltando alguma coisa em casa: fralda, leite, fruta…”. No último deslocamento da noite, ela prefere usar o serviço de carro por aplicativo, que, segundo ela, é o mesmo preço do ônibus e mais prático e seguro.
Quando chega em casa, ela ainda tem que fazer as tarefas domésticas sozinha e dar atenção às filhas. “Juntar a roupa para lavar, fazer comida para deixar pronta para o dia seguinte, arrumar a casa, alimentar as crianças, dar atenção a elas e tentar não surtar”, enumera, bem-humorada. No fim de tudo, Dayse está exausta, e o dia para ela só termina por volta das 2h da madrugada. “Mas o que mais me cansa é o trajeto na condução”, afirma.
Dayse faz parte de algumas das estatísticas de mobilidade urbana, sobretudo quando se olha para a questão de gênero, classe e raça. Algumas das principais diferenças entre os padrões da mobilidade das mulheres e dos homens são justamente esses múltiplos deslocamentos, alguns mais curtos, como ir ao mercado, levar e buscar o filho na escola ou em uma consulta médica. Deslocamentos feitos, sobretudo, por mães ou mulheres que cuidam de familiares idosos. Enquanto os homens se locomovem, geralmente, somente de casa para o trabalho e vice-versa ou, no caso de estudantes, casa-local de estudo.
“O cuidar dos filhos ou das pessoas doentes é visto como uma responsabilidade da mulher, é uma questão cultural e socialmente imputada a ela, assim como todo o trabalho doméstico não remunerado. Isso se agrava mais para as mulheres negras e de baixa renda, deixando-as ainda mais vulneráveis. E faz com que elas tenham uma série de deslocamentos chamados de viagens encadeadas”, explica Letícia Bortolon, gerente de Políticas Públicas no Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP).
Horas perdidas no trânsito
A rotina de Dayse já foi vivenciada por Rose Mari dos Santos, 48 anos, mãe de quatro filhos, hoje todos com mais de 25 anos, e por Ana Cristina, 46, mãe de dois jovens na mesma faixa etária. Em comum, elas ainda têm a dura rotina no trânsito e o fato de precisarem pegar três diferentes meios de transporte para chegarem ao trabalho.
Ana Cristina trabalha como assistente administrativa na Lapa, região central do Rio, e mora em Laguna Dourado, município de Duque de Caxias. Rose mora em São Bernardo, município de Belford Roxo, e trabalha como diarista em duas casas na zona sul carioca. Ambas levam, em média, quatro horas no deslocamento casa-trabalho, trabalho-casa.
Uma pesquisa feita pela Moovit, empresa de mobilidade urbana, aponta que o Rio de Janeiro é a região metropolitana com maior tempo médio de deslocamento no país, com a média de 67 minutos, e a terceira entre 99 grandes cidades analisadas, de 25 países. Pelo menos 11% dos deslocamentos feitos na capital carioca duram mais de duas horas. Outros 36% levam, em média, até duas horas. Outras duas metrópoles brasileiras aparecem no ranking das dez apontadas pelo estudo: Recife e São Paulo, ambas com média de 62 minutos.
“Esse deslocamento diário toma muito tempo da vida das pessoas, principalmente das mulheres das periferias, distantes das ofertas de emprego. Essa lógica de transporte reforça algumas desigualdades econômicas, de raça e gênero no acesso a oportunidades”, afirma Letícia Bortolon.
Desigualdades econômica e entre gêneros
As desigualdades entre gêneros se refletem no modo como as mulheres se deslocam e percebem o transporte público. Além de fazerem um número maior de viagens diariamente, elas usam mais (74,6%) o transporte coletivo e andam mais a pé que os homens (62,5%), como aponta estudo da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano de São Paulo, com dados da pesquisa Origem e Destino de 2012 do Metrô de São Paulo.
Entre a população de baixa renda, em uma família com ganhos mensais de até R$ 1.244, metade das viagens das mulheres (50%) são feitas caminhando, 28% de ônibus e apenas 3% têm elas ao volante do carro. Entre mulheres com renda mensal maior que R$ 9.330, a porcentagem delas no comando do volante sobe para 45%.
O grupo mais pobre de mulheres que usam carros é o que menos se desloca tendo o destino final o trabalho, o que sugere outras questões que intensificam as desigualdades, como mulheres que não trabalham porque precisam tomar conta da casa e dos filhos. As mulheres de baixa renda se deslocam mais em busca de educação (43,5%), e depois por questões de assuntos pessoais (14,4%) e saúde (7,6%).
Insegurança determina rota e transporte
Para as mulheres mais pobres, as opções de trabalho e transporte são menores e a qualidade de vida é pior. O estudo “Acesso de Mulheres e Crianças à Cidade”, realizado em 2018 pelo ITDP, com foco na mobilidade de mulheres periféricas da região metropolitana do Recife, mostra como a pouca oferta e a baixa qualidade de serviços públicos e de infraestrutura aumentam a insegurança das mulheres.
“Na linha de ônibus que pego atualmente da minha casa até a Pavuna, já fui assaltada duas vezes e levaram o meu celular, até que parei de pegar ele à noite e passei a fazer a última parte do trajeto de van”, conta Rose Mari.
Adrielly Pereira dos Reis, 23 anos, moradora do loteamento Veneza II, no bairro Capucho, em Aracaju, Sergipe, diz que anda na rua sempre atenta, e no transporte também. “Como toda mulher, já sofri assédio. E muitas das vezes os homens usam de desculpa o fato do ônibus estar lotado. Também já mudei de caminho por desconfiar que estava sendo seguida”, diz.
“A segurança pública é um dos itens prioritários para as mulheres. Para os homens, há outros quesitos que são mais importantes, como conforto do ponto de ônibus e facilidade para fazer integração”, explica Cristina Albuquerque, gerente de mobilidade urbana da WRI Brasil, empresa que ajuda a aplicar pesquisas de satisfação em várias cidades brasileiras junto a governos e empresas de transporte.
Para enfrentar o medo, as mulheres desenvolvem estratégias para garantir minimamente seu direito de ir e vir com alguma segurança. Adrielly é supervisora de uma farmácia a cerca de 6km de casa. Ela trabalha no turno da tarde e volta para casa às 23h. “Eu uso o transporte público para ir ao trabalho, mas para voltar, uso aplicativo por conta do meu horário de saída. Na pandemia, ficou ainda mais difícil ônibus a essa hora. A empresa está arcando com os custos do meu transporte por aplicativo”, revela.
A violência urbana e contra a mulher acabam influenciando nas escolhas de rotas e meios de transporte feitas por elas e reduzindo ainda mais as opções de deslocamento. Muitas mudam o caminho para deixar de passar em certa rua, em determinado horário, por estar deserta ou mal iluminada, por medo de serem assaltadas ou de sofrerem assédio e violência sexual. Algumas trocam o meio de transporte, mesmo que leve mais tempo para chegar ao destino. Em último caso, até deixam de se deslocar e realizar atividades.
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