Concordo com o embaixador Rubens Ricúpero quando diz que que a primeira grande perda do governo Bolsonaro com a vitória de Biden não é uma derrota brasileira apenas, mas de todo o mundo engolfado na onda de extrema direita, aí incluídos Hungria, Polônia, Ucrânia e os históricos do mundo islâmico absolutista. O presidente brasileiro perdeu o chão onde pisava com segurança e certeza de dias cada vez melhores. Não será mais assim no governo Joe Biden/Kamala Harris. Nenhum dos dois é de esquerda, menos ainda socialista ou comunista, como proclamam os bolsonaristas. Nem houve fraude capaz de alterar os resultados das urnas. Aliás, as fraudes eleitorais nos Estados Unidos se situam historicamente em ridículos 0,003% ou um milésimo a mais. Trump apenas esperneia, grita e ameaça, mas as instituições são fortes o suficiente para resistir às tentativas de burlar o sistema.
É importante deixar claro que Joe Biden e Kamala Harris são legítimos representantes do universo político norte-americano e concorreram com sucesso à sucessão de Donald Trump com o beneplácito do establishment, como, de resto, todos os presidentes e vices eleitos a cada quatro anos. Trump não perdeu as eleições para nenhum fenômeno, nenhuma novidade, sua derrota deve ser atribuída a si próprio e a seus fieis conselheiros, às declarações mentirosas que faz desde o campanha de 2016, à politica isolacionista e arrogante dentro e fora de suas fronteiras. Ele é um estranho no ninho, sem história na vida pública, enquanto Biden tem meio século de parlamento nos ombros, entende de todos os principais problemas americanos dentro e fora dos Estados Unidos. Foi vice do primeiro presidente negro e tem ao lado a primeira mulher vice-presidente do país, e ainda por cima negra, filha de jamaicano com indiana, nascida e criada na Califórnia.
É duro chutar cachorro morto, não é do meu feitio, mas não há como não falar mal de Donald Trump depois da derrota, porque ele não quer seguir as regras do jogo e insiste em inventar fraude, quando o correto seria ajudar Melania a empacotar a mudança da Casa Branca como ela parece fazer desde sábado passado, aparentemente sem dar atenção às birras do marido incapaz de aceitar o próprio destino. O mínimo que ele consegue com essa história de roubo de votos é lançar suspeita sobre as eleições passadas e futuras no país que detém o invejável índice de nenhum golpe de estado desde a independência. É certo que promove e financia muitos pelo mundo afora, como o Brasil bem sabe por 1964 e 2016, mas nunca em seu amado território.
O triste da comédia de erros protagonizada por Trump é a pronta adesão de Jair Bolsonaro e seu filho deputado federal cuja filha tem o nome de Georgia. Virão aí Virgínia, Carolina e Dakota? Esta última não, é nome indígena que o avô não aprovaria de jeito nenhum. Brincadeiras à parte, Jair está órfão, sua política externa com a proposta de tornar o Brasil um “pária” no mundo não dará certo. Estão com os dias contados as posições sobre meio ambiente e os direitos humanos identificados capciosamente como “coisa da esquerda” até pela nossa mídia burra (com o possível pleonasmo). Outros posicionamentos brasileiros adotados nos últimos anos serão bombardeados, reduzidos e pó de traque pelas instâncias internacionais livres das ameaças e dos boicotes do governo americano.
Biden não é santo, não está do lado dos fracos e oprimidos, mas tem relações pessoais com o Brasil verdadeiro. Foi quem trouxe, quando era vice-presidente, documentos sobre a participação americana no golpe de 1964, torturas e desaparecimentos de brasileiros durante a ditadura. Era a última coisa que a direita, sobretudo os militares, queria que acontecesse, e ele desembarcou em Brasília e os entregou nas mãos da presidenta Dilma Rousseff no Palácio do Planalto, pessoa de suas relações familiares e com quem mantém até hoje relações cordiais. Talvez isso o faça ter um olhar especial sobre o Brasil, como o genocídio da população negra favelada brasileira poderá merecer atenção especial de Kamala Harris.