Se o presidente não dá bola para a corrida mundial pela vacina contra a Covid, conforme sustentou outro dia com desdém diante da opinião pública, por que apenas não mantém a boca fechada e evita vilipendiar dos familiares próximos e distantes, amigos, colegas e conhecidos cujo peito amarga a morte de mais de 190 mil brasileiros? Dizem que é porque em seu sangue corre o vírus da profunda ignorância, do recalque, de saber-se bem abaixo do resto do seu povo. Jessé de Souza escreveu que como muitos imigrantes italianos vindos para embranquecer a raça brasileira no tempo de D. Pedro II, os Bolsonaro trouxeram nas malas lastro de pretensa superioridade, deboche, desdém, espertezas miúdas e necessidade imperiosa de subir na vida de qualquer jeito, esquecer a origem e “se dar bem”. Não à toa, Bolsonaro repete “parente bom é parente longe, que pede favores e não paga dívida nem visita.
Contrariamente aos patrícios que deram com os costados por aqui fugidos de perseguição política do rei italiano, ou que construíram patrimônio e perpetuaram valores culturais próprios. Uma infinidade de cabelo-de-milho e olhos azuis flutuou por um tempo no mar social brasileiro, comendo farinha seca por parmesão ralado, até amalgamar-se às camadas inferiores nacionais, muitas vezes lavando a roupa e servindo àquela gente morena que os chamava de “carcamanos” indistintamente, “coisa menor, gente ignorante”. Logo, em pouco tempo os Bolsonaros foram devidamente encaixados na pirâmide social abaixo dos brancos pobres e remediados, dos mestiços que dominavam as migalhas de sua sobrevivência. Migrantes do século XIX tiveram somente a cor da pele a diferenciá-los dos negros escravizados até a véspera – o suficiente para não lavarem as privadas da sociedade. Olhem as fotos e digam: o que é o deputado Hélio Negão na fila do pão?
Enfiados como toupeiras num escaninho social de que não se julgavam merecedores desde quando embarcados nos navios rumo “à América”, por instinto viram-se a dividir oportunidades de que tampouco se julgavam merecedores na lavoura, nos pequenos comércios e serviços pequenos ou ilegais e sujos. A luta pela sobrevivência é mortal, como bem o sabem Bolsonaro e seus amigos milicianos. Mas os Bolsonaro estavam destinados a tornarem-se a foto oficial do Brasil. Seu representante máximo é um assinalado, montou o cavalo que lhe passou à frente e mesmo incapaz de qualquer raciocínio militar, de um exerciciozinho no fim de semana, mas aceito no serviço militar obrigatório, traçou ali o histórico de atleta de impossíveis flexões e das pescarias com Queiroz, porque logo na década de 1980, paraquedista do Exército e liderança boçal no tempo da ditadura boçal, encontrou terreno fértil para pregar explosões de adutoras, extermínio de adversários, intimidações e ameaças que já avisavam o tipo perigoso que a ditadura forjava. Bolsonaro, como inúmeros outros em condições semelhantes, adivinhou nas hostes do Exército o lugar propício ao desenvolvimento da falta de educação que traz do berço, no interior paulista.
Encurtando a prosa, Bolsonaro foi julgado, condenado, apelou (afinal ele ia só explodir o Guandu, enquanto o brigadeiro Bournier mandaria o gasômetro do Rio pelos ares) e foi absolvido pelo Superior Tribunal Militar, a excrescência-mor da justiça militar brasileira. Obrigado a deixar a farda, mas recebendo soldo, abraçou a carreira política com o entusiasmo da ralé fardada. Elegeu-se deputado federal, abriu caminho para os filhos e aí está no seu apogeu, 32 anos depois.
Voltando àquela formação familiar social básica, Bolsonaro cultiva gostos e hábitos de torturadores e pisa no pescoço do negro sem qualquer alcance do que faz. Xinga-o, acusa-o de improdutivo, incapaz até de reproduzir, e gira a metralhadora para onde aponta o nariz. Insinua que a repórter quer “dar o furo”, que ozônio como remédio contra Covid é aplicado via anal, que querem “a sua hemorroida”, que não é coveiro, é Messias mas não faz milagre, que filho seu não casaria com preta porque foi bem educado, que a mulher do Macron é uma “baranga”, e que oriental tem pau pequeno (uma fixação familiar).
Enfim, cada destempero intestinal que jorra da boca de Bolsonaro é para mim prego novo no seu caixão. O mundo inteiro está no rumo da vacinação em massa que facilitará a retomada do desenvolvimento, no cenário geral onde os países estarão inseridos nos esforços pelo clima, pela natureza, contra as desigualdades regionais históricas, contra tudo que Bolsonaro representa ou pensa representar. Como escreve Luiz Carlos Azedo no Correio Braziliense deste domingo, o Brasil mudará ou será mudado até 2022, quando a retórica bolsonarista obscurantista e anacrônica terá batido no fundo do poço. E vamos nos lembrar sem nenhuma nostalgia de quando se dizia que a Terra era plana, a corrupção acabou, floresta úmida não pega fogo, um manda e outro obedece.