O dia de visitas à Penitenciária Estadual do Paraná (PEP-II), popularmente conhecida como Penitenciária de Piraquara, localizada na Região Metropolitana de Curitiba, representa felicidade e angústia para os familiares e amigos de pessoas presas.
Felicidade pela possibilidade de ver o parente ou conhecido, e angústia pela falta de clareza e mudanças constantes nas regras de visitação.
O local é um complexo com três penitenciárias, mas todos os relatos desta reportagem se referem à PEP-II. Nela, os obstáculos começam na emissão da carteirinha de visitante e se perpetuam até a entrada na penitenciária, se repetindo a cada visita.
Eduarda Oliveira Batista, 41 anos, auxiliar de cozinha, vive a rotina de visitas à Penitenciária há dois anos e, mesmo tentando cumprir todas as regras, nunca tem certeza se poderá ver seu irmão.
“É tudo muito difícil. Eu fiquei dois meses esperando a minha carteirinha, não tinha informações no site, eu ligava e ninguém sabia nada, tive que vir pessoalmente à Defensoria Pública para conseguir. No começo eu sentia que o problema era eu, que não sou estudada, não entendia as coisas, hoje vejo que o sistema é mal organizado e muitas vezes faz isso por maldade”, diz Eduarda.
Sistema é ruim com presos e parentes
Outra visitante relata as dificuldades que enfrenta para ver seu filho. Beatriz Figueira, 66 anos, comerciante, teve seu filho preso durante a pandemia e conta que, apesar dos problemas que enfrenta para fazer visitas, agradece por poder ter um encontro presencial.
“A minha primeira visita foi online, fui uma das poucas mães que conseguiu, fiz oito visitas por vídeo. Não era fácil, os agentes não deixavam ele falar direito, era pouco tempo… Tudo é complicado, na online a gente via o quanto o sistema é ruim com eles e na presencial o sistema é ruim com a gente também”.
Segundo relata, “na minha primeira visita presencial, eu não entrei por causa de um sapato e um sutiã. Até tirei tudo, disse que entrava só de blusa, mesmo assim não deixaram. Chorei muito, viajo cinco horas para ver meu filho. Nas outras visitas tive dificuldades, mas aí tinha a ação da Solidariedade e o Recomeços, eles ajudam muito, mas é sempre muito difícil”.
Sem visitas pela vestimenta ou falta de informação
A ação citada por Beatriz se chama Solidariedade-Antiprisional e foi idealizada pela Frente pelo Desencarceramento do Paraná (Desencarcera-Paraná), que surgiu em 2020.
Rosinel Oliveira é articuladora da Frente e, junto com sua mãe, enfrentavam dificuldades para realizar visitas com as novas regras, após a pandemia.
“Víamos muitas mães, esposas e familiares saírem de lá aos prantos, simplesmente por causa de uma vestimenta ou falta de informação. Como eu participo das reuniões mensais da Frente pelo Desencarceramento do Paraná, nós estamos atentos a todas as mudanças, informações e protocolos que muitas vezes não chegavam em outros familiares”, explica Rosinel.
Jeferson Brambila viveu essa situação quando estava privado de liberdade e seu pai e sua avó não conseguiram fazer a visita por falta de clareza sobre o vestuário permitido.
“Não tinha informação correta sobre o vestuário, as cores permitidas, não tinha ninguém lá para ajudar, emprestar. Os uniformes vendidos na barraca são muito caros e a maioria das visitas não tem como arcar com mais esse custo”, conta Jeferson.
Hoje ele é voluntário do Solidariedade-Antiprisional. Todo o primeiro domingo do mês, prepara o café, monta a tenda diante da penitenciária onde estiver ocorrendo a ação e ajuda no que for necessário durante o dia.
Mulheres negras e periféricas na fila
Patrícia Herman é articuladora da Frente pelo Desencarceramento do Paraná e participa de ações de auxílio a visitas. Ela destaca que a principal função é o contato com as famílias.
“Dividir mesmo; compartilhar a experiência de ser familiar de uma pessoa que está privada de liberdade, mostrar que os familiares estão unidos e organizados e que eles podem denunciar. Precisamos acolher essas pessoas”, afirma Patrícia.
Ela também destaca a presença majoritária de mulheres nas filas e como a questão de gênero influencia na vida de familiares de pessoas privadas de liberdade.
“O mecanismo do país que a gente vive é um mecanismo que prende, principalmente homens negros, periféricos e a fila é o reflexo disso. Então são suas mães, suas filhas, suas irmãs que fazem visitas, são mulheres negras e periféricas. Ainda tem a questão de com quem deixar os filhos. E uma grande dificuldade de estar ali, falta de dinheiro, porque estão gerenciando uma família sozinhas”, relata Patrícia.
Articulação presencial e pelo celular
Com uma tenda, panfletos, roupas para empréstimos, café, leite, água e lanchinhos, ativistas da Frente pelo Desencarceramento do Paraná acompanham a fila das visitas da principal penitenciária do Estado, a PEP-II.
As ações acontecem todo o primeiro domingo do mês, desde novembro de 2021. Além das informações sobre a entrada na unidade prisional e acolhimento aos familiares, Rosinel Oliveira, ou Rosi, como é conhecida pelos visitantes, explica que o principal objetivo é criar vínculos com os familiares e coletar denúncias de violações direitos.
“Nós estamos de olho em todas as violações de direito que acontecem durante o dia, criamos um vínculo com os familiares para que eles possam ter confiança em nós. Ouvimos os relatos e denúncias e levamos até os órgãos competentes”, explica Rosi.
O vínculo não ocorre somente na abordagem na fila ou nas conversas na tenda. As trocas acontecem principalmente pelos grupos de WhatsApp chamados Recomeços, que reúnem visitantes e articuladores da Frente pelo Desencarceramento do Paraná.
Nos grupos, além das informações de datas de visitas, são organizadas caronas solidárias, orientações sobre as regras de vestimenta, alimentação, comunicação e rotina das penitenciárias.
Jussara Dominique Cardoso, 44 anos, recreadora infantil, a ação da Frente pelo Desencarceramento do Paraná foi essencial. Ela começou a rotina de visitas ao marido na PEP-II em janeiro deste ano.
“A primeira vez que eu vim, não sabia nada. Cheguei e vi aquela placa com as cores das roupas e vi que não entraria, foi um homem que viu eu voltando e disse pra eu ir até a caminhonete buscar uma roupa emprestada. Lá eu fui no trocador improvisado e me adicionaram no grupo de WhatsApp Recomeços 3. Das outras vezes que estive na fila, sempre passo lá, seja para tomar café, me sentir mais segura antes de entrar e pedir ajuda para denunciar o horror que é esse Raio-X. Todas as vezes os agentes fazem questão de nos humilhar, principalmente nós, mulheres”, relata Jussara.
Raio X e revista vexatória
Além das restrições e da falta de informação sobre os tipos de vestimentas, outro problema recorrente são os de imagens nos scanners corporais e Raio-X. De acordo com Rosi, os agentes penitenciários não têm a capacitação adequada para interpretar as imagens geradas pelos equipamentos, situação que muitas vezes levam à truculência e violação dos direitos humanos.
“Gases, líquidos, fezes ou até mesmo a falta de nitidez das imagens é interpretada como porte de drogas ou objetos no corpo”, conta Rosi.
Ainda segundo a articuladora da Frente, essa situação leva visitantes a ficarem horas sem comer e torna todo o processo ainda mais doloroso. Uma senhora que prefere não se identificar, de 71 anos, visita sua filha desde 2009 e conta que inúmeras vezes ficou horas sem comer por medo de ser barrada.
“São mais de dez anos nessa fila. Eu entrei quase todas as vezes, mesmo eu sendo velha, os agentes não facilitam. No ano passado, aquela máquina acusou que eu tinha droga no estômago, acusava um líquido. Eu fiz xixi e, mesmo assim, continuava não passando. Me levaram para o hospital, foi muita humilhação. Eles me xingavam, xingaram a minha filha, chorei o caminho todo e ainda fiquei com a minha carteira retida. Contei a situação no grupo de recomeços e lá tive ajuda para poder voltar às visitas e denunciar a situação”, conta.
Visitantes ficam sem comer para passar pelo raio-x
Teodora Santos Marcondes, de 33 anos, visita seu irmão e relata o medo e a insegurança que o scanner corporal causa. “Um dia antes da visita eu começo a tomar só água e nada escuro ou gás. Também evito comer. Faço sopa com mais caldos ou como duas maçãs, porque qualquer coisa que gente tenha no estômago ou intestino aparece no Raio-X e os agentes não deixam entrar, nos acusam de tentar entrar com drogas na cadeia.”
Fortalecimento da luta antiprisional
Lucas Duarte, coordenador na Pastoral do Cárcere e membro da Frente pelo Desencarceramento do Paraná, destaca que a ação do grupo tem como principal função estar próximo e acolher as pessoas da fila.
“A lógica dos sistema carcerário é produzir violências, quem tem uma pessoa presa em sua vida, tem vida virada de cabeça para baixo. No dia de visita é submetido a mais violências, o familiar é revitimizado. Muitas vezes, conversamos com familiares que passaram por alguma situação na revista vexatória que preferem não denunciar por medo de piorar ou os agentes do estado descontarem em seus parentes privados de liberdade, as pessoas ficam submetidas a opressão. Sabemos que não é seguro”, afirma.
Lucas Jeison, membro da Rede Nenhuma Vida a Menos e da Frente pelo Desencarceramento do Paraná, destaca a importância da atividade para aumentar os laços de solidariedade entre familiares de pessoas presas, sobreviventes do sistema prisional e pessoas que se importam com a causa.
Segundo ele, as informações e orientações disponíveis são de difícil compreensão. “No empréstimo de roupas, há pessoas que não recebem a informação sobre as roupas permitidas, além de haver regras difíceis de compreender – um tom de roupa que entra em um dia e não em outro, por exemplo. Já aconteceu de pessoas que passaram dias viajando para a visita só conseguiram entrar porque havia roupas para serem emprestadas”, conta Lucas.
De acordo com ele, a atividade é fundamental porque são nesses espaços que chegam denúncias de torturas e de diversas violações de direitos que, posteriormente, são difundidas e enviadas para setores responsáveis.
“É possível ver que a pena imposta às pessoas presas atinge de maneira brutal também suas famílias, que são submetidas a inúmeras violações de direitos e humilhações. Enfim, a ação é prova de que é possível e urgente fortalecer a luta por direitos e contra o terrorismo de estado dentro e fora das grades. Esperamos que essa ação permaneça e possa inspirar outras do mesmo tipo em outras unidades e territórios”, finaliza Lucas.
Dados da Defensoria Pública do Paraná
Segundo a Defensoria Pública do Paraná (DPRR), somente em 2023 houve 11 notícias de visitantes que alegam ter direitos violados. O Núcleo da Política Criminal e da Execução Penal (NUPEP) realizou a abertura de procedimento com o objetivo de concentrar as recorrentes denúncias anônimas de revista vexatória nas unidades prisionais do Estado do Paraná.
De acordo com a defensora pública Andreza Lima de Menezes, por conta a extensa quantidade de registros de violência relatadas à Defensoria, foi expedido documento de recomendações que procuram combater as violações de direitos.
“São vários registros de humilhação, coação para assunção de posse de objeto ilícito, revista manual em partes íntimas, agachamentos, ausência de efetivo policial para encaminhamento à unidade de saúde para fins de exame médico, coação para assinar documento concordando com o procedimento médico, coação para defecar e urinar em frente a servidores, impedimento de participar da consulta médica”, enumera a defensora.
Segundo a defensora, em março de 2023, junto com a chefia do Núcleo da Infância e Juventude (NUDIJ/DPPR), o NUPEP acompanhou o funcionamento da Central de Atendimento a Visitantes de Piraquara durante a visitação das crianças e adolescentes e expedirá relatório conjunto da visita.
A escolha do local foi motivada pelo número de notícias de violação recebidas. Há, no entanto, principalmente unidades prisionais menores (cadeias públicas) que sequer dispõem de aparelho de escâner corporal, fazendo uso de práticas vexatórias repudiadas pela lei estadual.
Depen nega irregularidades e problemas na revista
O Departamento de Polícia Penal do Paraná (DEPPEN) nega qualquer tipo de irregularidade no sistema. Em resposta enviada à Agência de Notícias das Favelas (ANF), a assessoria de comunicação informa que não há violações nos procedimentos de revista dos visitantes.
Segundo a informação oficial, os procedimentos de revista respeitam todos os direitos relacionados à dignidade da pessoa humana, sem nenhum registro de abuso ou excesso, ressaltando que os grupos especializados que atuam no DEPPEN são regularmente capacitados pela Escola de Formação e Aperfeiçoamento Penitenciário, atuando dentro da legalidade, com conhecimento técnico e operacional, e em conformidade com os protocolos de segurança.
Raissa Melo
Esta matéria foi produzida com apoio do Edital Google News Initiative.
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